<\/a>Seus passos a levaram de encontro ao seu antigo quarto, com seus cheiros, contornos e uma pequena surpresa sobre a cama que fez seus l\u00e1bios se precipitarem num sorriso amplo e irrestrito. Seus movimentos eram r\u00e1pidos, iguais a de uma crian\u00e7a que acaba de ser agraciada por um presente inesperado. A caixa revelava centenas de folhas sobre o t\u00edtulo “tra\u00eddos pelo desejo” e ali junto a soleira da porta, uma jovem de tempestades se mantinha em sil\u00eancio, enquanto espiava tudo atentamente.<\/p>\nAlexandra teria devorado todas aquelas p\u00e1ginas se n\u00e3o tivesse sentindo que a aus\u00eancia que nutria ao longo de todos aqueles dias tinha simplesmente desaparecido. O olhar das duas desenhou sorrisos naquele breve espa\u00e7o de existir. O reencontro gerou abra\u00e7os apertados e uma cobran\u00e7a.<\/p>\n
_ Quem disse que poderia ficar tanto tempo longe? Morri de saudades…
\n_ E o gato? Ainda faz muito barulho na janela?
\n_ N\u00e3o. Eu pus ele pra assistir a novi\u00e7a rebelde. Sabia que ele n\u00e3o achou gra\u00e7a?
\n_ Eu posso imaginar. Nem \u00e9 a epoca certa. E voc\u00ea se esqueceu de servir uma ta\u00e7a de vinho pra ele.
\n_ Gatos n\u00e3o bebem vinho.
\n_ Eu nunca tinha ouvido falar de um gato imagin\u00e1rio que n\u00e3o pudesse beber vinho. Acho melhor inventar ele de novo e por favor, dessa vez, corrija os equivocos…
\n_ Eu senti falta disso. Voc\u00ea nem imagina o quanto… Mas agora v\u00e1 embora. Eu tenho uma novela pra ler. – disse ela em meio a sorrisos largos, espa\u00e7ados, enquanto empurrava Rayssa pra fora do quarto e fechava a porta. O mundo de sua amiga agora lhe pertencia.<\/p>\n
Enquanto isso a chuva castigava as ruas, espantava a escurid\u00e3o com rel\u00e2mpagos e tumultuava o sil\u00eancio com seus trov\u00f5es. Muita gente corria pra casa, em meio a po\u00e7as que anunciavam poss\u00edveis transtornos. O transito mais lento. Os passos mais r\u00e1pidos e as agonias multiplicadas. O olhar de Rayssa pela janela parecia compor pequenos epitetos, enfileirados. Ela estava de volta ao mundo real das coisas, onde ficaria de certo por algum tempo at\u00e9 encontrar um mundo novo que a levasse pra longe daquela realidade com sons de campainhas fren\u00e9ticas que exibiam pressa em seus movimentos. Ela n\u00e3o tinha pressa e caminhou at\u00e9 a porta com a calma que lhe era t\u00e3o peculiar. Era Anne que n\u00e3o escondeu a frusta\u00e7\u00e3o ao encontr\u00e1-la.<\/p>\n
_ Rayssa? Ent\u00e3o est\u00e1 de volta? Entendo\u2026 E pensar que a Alexandra me disse que vinha pra c\u00e1 por causa da chuva.
\n_ Como vai Anne Letrech? \u2013 cumprimentou Rayssa enquanto ignorava tudo que era dito por Anne que foi abandonada junto a porta por aquela \u201cjovem petulante\u201d que s\u00f3 sabia trazer incomodos para a vida daquela artista pl\u00e1stica que quis acreditar durante algum tempo que Rayssa simplesmente iria desaparecer.<\/p>\n
_ Eu soube da sua nova exposi\u00e7\u00e3o. Tamb\u00e9m soube que ficou muito aqu\u00e9m das expectativas. A cr\u00edtica n\u00e3o foi nada gentil com voc\u00ea.<\/p>\n
Anne respirou fundo diante daquele infeliz coment\u00e1rio que parecia ter sido usado como forma de dizer \u201ceu falei com a Alexandra o tempo todo\u201d. Ela por sua vez respirou fundo e tentou superar aquela presen\u00e7a desagrad\u00e1vel.<\/p>\n
_ Mas a Alexandra adorou.
\n_ Mesmo? \u2013 ironizou Rayssa que sabia a verdade por tr\u00e1s daquela ilus\u00e3o.
\n_ N\u00e3o leu o que ela escreveu no blog? Pensei que lesse tudo que ela escreve porque eu leio. Eu conhe\u00e7o cada palavra escrita por ela\u2026
\n_ Imagino que sim. \u2013 um sorriso perverso ganhou forma nos l\u00e1bios de Rayssa que j\u00e1 sabia da volta dos famosos cadernos de capa preta. Ela precisou se conter, afinal, em dado momento ela sentia vontade de torturar aquela figura humana com dizeres, caretas, formas inusitadas de sil\u00eancio. Era muito divertido v\u00ea-la se retorcendo, mas havia Alexandra e por ela era preciso silenciar as travessuras<\/p>\n
_ A Alex est\u00e1 no quarto dela\u2026
\n_ Nossa. Ela n\u00e3o te avisou que aquele n\u00e3o \u00e9 mais o quarto dela?<\/p>\n
O sorriso perverso voltou aos l\u00e1bios de Rayssa que parecia observar Anne como quem aprecia um pote de balas coloridas e pensa em qual ir\u00e1 comer primeiro.<\/p>\n
_ Voc\u00ea gosta de gatos?
\n_ O que?
\n_ Gatos. Bichos com quatro patas, uma boca, dois olhos e que eventualmente inventam movimentos e sons\u2026
\n_ Eu sei muito o que \u00e9 um gato Rayssa.
\n_ Ent\u00e3o responda a minha pergunta: gosta de gatos ou n\u00e3o?<\/p>\n
Anne cruzou os bra\u00e7os diante do corpo exibindo todo o seu descontentamento para com aquele di\u00e1logo sem sentido algum. Respirou fundo feito um boi bravo no pasto, disposto ao ataque. Fechou a cara. Ferveu seus pensamentos. Sentiu seus olhos incendiarem-se. Sua pele parecia estender-se por tudo o que a rodiava naquele momento. Mas se conteve. Pensou em sua amada e nas poss\u00edveis rea\u00e7\u00f5es sempre a favor daquela garota petulante cuja arrog\u00e2ncia transbordava de sua pele. Mas haveria um dia em que ela simplesmente desapareceria. Anne primeiro tremeu, mas depois acalmou-se e foi ao encontro de sua amada naquele quarto que n\u00e3o mais lhe pertencia. Na certa iriam embora. Na certa discutiriam e seriam precisos novos presentes, novas desculpas, novas flores sobre a mesa com cart\u00f5es coloridos dizendo o que sempre dizia para certificar-se que ela n\u00e3o esqueceria.<\/p>\n
>>> continua na quarta-feira, 09\/02\/2011<\/strong><\/em>\u2026<\/p>\n