{"id":445,"date":"2011-02-16T12:49:00","date_gmt":"2011-02-16T14:49:00","guid":{"rendered":"http:\/\/minhasmares.com.br\/?p=445"},"modified":"2011-11-04T08:01:52","modified_gmt":"2011-11-04T10:01:52","slug":"e-pifanias-cap-26_16","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/minhasmares.com.br\/e-pifanias-cap-26_16\/","title":{"rendered":"E-pifanias. Cap 26"},"content":{"rendered":"

Por <\/span>Lunna Guedes<\/span><\/a><\/strong><\/p>\n

\"epifanias\"<\/span><\/a><\/p>\n

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Era madrugada alta quando Alexandra acordou, num susto. Deveriam ser quatro horas ou mais. Os ponteiros n\u00e3o pareciam certos. O hor\u00e1rio de ver\u00e3o j\u00e1 havia come\u00e7ado novamente, mas ela estava t\u00e3o desatenta aqueles \u00faltimos dias que n\u00e3o se lembrava nem mesmo de ter dormido naquele seu ninho, onde tudo era tranq\u00fcila e havia sido oferecido a ela sem nenhuma exig\u00eancia \u201c\u00e9 seu enquanto quiser que seja\u201d. Aquela voz seguia em seu intimo. Suave e generosa, como de costume… O apartamento andava vazio, sem gra\u00e7a desde o dia em que Rayssa cruzou o oceano e n\u00e3o importava se elas se falavam diariamente. N\u00e3o era a mesma coisa acordar pela manh\u00e3 sem aquele abra\u00e7o que parecia conter o mundo. Sem aquele sorriso de menina que conhece tudo e jura nada conhecer.<\/span><\/span><\/p>\n

Os dias estavam seguindo sua rotina natural. Quase trinta. Quase uma saudade inteira. Quase uma vontade de voar para outras terras apenas para ganhar um abra\u00e7o e voltar. Tudo ilus\u00e3o passageira que causava sorrisos em Alexandra que preparava seu ch\u00e1 como de costume. Tinha dias que ela n\u00e3o voltava pra \u201ccasa\u201d. Mas aquele lugar estava vazio demais. Estava quase imposs\u00edvel respirar. Ao contr\u00e1rio do que se imaginava, a viagem de Rayssa n\u00e3o deixou as coisas melhores. Muito pelo contr\u00e1rio: havia novos elementos na vida de Alexandra: novos amigos, o trabalho, as ruas da cidade, os parques, os museus. Tudo parecia roub\u00e1-la de Anne que reclamava das aus\u00eancias. A reda\u00e7\u00e3o da revista era uma extens\u00e3o daquele apartamento onde ela se enfiava para se sentir segura.<\/span><\/span><\/span> <\/p>\n<\/div>\n
E quando percebia a exaust\u00e3o causada por suas atitudes hostis. Ela recuava. Arrependia-se. Jurava que seria diferente. Era quando surgiam os presentes, os envelopes coloridos. Tudo demasiadamente repetitivo. N\u00e3o precisava ser assim, mas Anne n\u00e3o sabia ser diferente. Ela tamb\u00e9m sofria. Duas vezes. Com a aus\u00eancia e com as desculpas as quais se obrigava. Sua pele exibia uma falsa certeza de que n\u00e3o havia absolutamente nada de errado no que fazia. Ela estava apenas preservando o seu amor, que sufocava, machucava e j\u00e1 n\u00e3o era mais capaz de alcan\u00e7ar Alexandra que dia ap\u00f3s dia se afastava um pouco mais.<\/span><\/span><\/span> <\/p>\n<\/div>\n
A vontade de voltar h\u00e1 muito estava perdida e Anne soube disso depois da \u00faltima briga. Ela s\u00f3 queria viajar para longe daquela cidade. Daquelas pessoas. Daquele maldito novo trabalho que a tomava por inteiro; preenchendo-a sem deixar nada para ela.<\/span><\/span><\/span> <\/p>\n<\/div>\n
_ A gente precisa disso: eu e voc\u00ea. S\u00f3 n\u00f3s duas, sem mais ningu\u00e9m. Eu pensei na \u00cdndia. Voc\u00ea n\u00e3o conhece e eu vou adorar te apresentar aquele lugar cheio de cores, de vida. \u00c9 um universo novo, totalmente diferente de tudo que voc\u00ea j\u00e1 viu.
\n<\/span><\/span>_ Eu n\u00e3o posso. Al\u00e9m do mais, com toda certeza, voc\u00ea iria acabar encontrando algu\u00e9m ou alguma coisa que iria te incomodar. E ao inv\u00e9s de ficar por l\u00e1 dez dias, ir\u00edamos ficar quando muito: dois ou tr\u00eas. A viagem se transformaria num inferno porque voc\u00ea iria insistir o tempo todo para virmos embora.
\n<\/span><\/span>_N\u00e3o…
\n<\/span><\/span>_ Tem certeza que n\u00e3o? Por que nos \u00faltimos tempos voc\u00ea implica at\u00e9 com as sombras das \u00e1rvores que segundo voc\u00ea: rouba-me de voc\u00ea. Eu estou cansada disso. Eu n\u00e3o sou uma propriedade com demarca\u00e7\u00f5es, muro, port\u00f5es, grades, cadeados. Eu sou um ser humano e voc\u00ea est\u00e1 conseguindo destruir tudo que era pra ser agrad\u00e1vel, bonito. E sinceramente eu acho que voc\u00ea n\u00e3o gosta de mim. As minhas roupas te incomodam, os meus amigos, o meu trabalho. Tudo que eu fa\u00e7o incomoda voc\u00ea. Absolutamente tudo… Eu estou cansada. Muito cansada…
\n<\/span><\/span>_ N\u00e3o diz isso. Eu juro que eu vou tentar mudar. Voc\u00ea vai ver…
\n<\/span><\/span>_ Quantas vezes voc\u00ea j\u00e1 disse isso? Estamos juntos h\u00e1 tr\u00eas anos e voc\u00ea passou a maior parte do tempo se desculpando por causa do seu maldito ci\u00fame, sua inseguran\u00e7a, sua desconfian\u00e7a. Voc\u00ea n\u00e3o conhece entender a coisa mais bonita que eu tenho na vida…
\n<\/span><\/span>_ A Rayssa?
\n<\/span><\/span>_ Eu dispenso o seu sarcasmo. A Rayssa \u00e9 uma pessoa muito querida. Uma amiga pra todo o momento, pra todas as horas. Eu achei que n\u00f3s duas f\u00f4ssemos ter algo pr\u00f3ximo disso…
\n<\/span>_ Ter\u00edamos se ela n\u00e3o estivesse o tempo todo presente na sua vida. Ocupando todos os espa\u00e7os. N\u00e3o deixando nada pra ningu\u00e9m…<\/span><\/span><\/span> <\/p>\n<\/div>\n
Alexandra respirou fundo. Ficou ali, im\u00f3vel por alguns minutos. Apenas observando aquela figura humana que j\u00e1 n\u00e3o era mais t\u00e3o bonita quanto antes e ela j\u00e1 nem conseguia mais se lembrar o que havia despertado certas sentimentalidades em sua pele. Ela olhava para Anne e n\u00e3o via nada mais. Era apenas um corpo atormentado por algo que ela chamava de amor, mas de certo tinha outro nome.<\/span><\/span><\/span> <\/p>\n

Rayssa dias antes tinha comparado Anne com os personagens de Sartre em \u201cA idade da raz\u00e3o\u201d onde Mathieu e Ivich s\u00e3o sempre, um para o outro, algo diverso do que poderiam ser, quase sempre menos ou mais do que de fato desejavam. \u201cN\u00e3o era amor o amor que Sartre tecia naquelas linhas\u201d \u2013 dizia ela em seu e-mail. E naquele momento ficou f\u00e1cil compreender que n\u00e3o era amor o que ela sentia, mas tamb\u00e9m n\u00e3o sabia como definir seus sentimentos. Rayssa achava que era encanto. Anne tinha a idade que Alexandra considerava perfeita. Tinha alcan\u00e7ando o sucesso. Morava sozinha, tinha um atelier e conhecia um mundo do qual at\u00e9 ent\u00e3o, ela nem se quer tinha ouvido falar. Tudo isso misturado naquela fei\u00e7\u00e3o l\u00facida, misteriosa e envolvente que agora parecia um desenho a carv\u00e3o que tinha sido esquecido na chuva…<\/span><\/span><\/span> <\/p>\n

Anne percebeu rapidamente que aquela discuss\u00e3o tinha chegado ao fim. Viu quando Alexandra passou por ela com sua mochila e saiu pela porta, deixando-a ali com seu prato. \u201cme desculpe\u201d murmurou para o vazio enquanto suas l\u00e1grimas se multiplicavam pelo cen\u00e1rio vazio daquela figura que amava mais que tudo em sua vida.<\/span><\/span><\/span> <\/p>\n

O sil\u00eancio daquele lugar foi se intensificando lentamente at\u00e9 se tornar insuport\u00e1vel. Repentinamente, Anne se viu possu\u00edda por uma f\u00faria incontrol\u00e1vel que a fez quebrar tudo que conseguiu arremessar contra a parede. S\u00f3 parou quando seu corpo alcan\u00e7ou a exaust\u00e3o e ela se viu ali em meio a destrui\u00e7\u00e3o causada por seus atos descontrolados. O inevit\u00e1vel aconteceu: uma gargalhada desenfreada tomou conta do espa\u00e7o enquanto seu corpo escorregava pela parede at\u00e9 o ch\u00e3o. Ela adormeceu ali mesmo e s\u00f3 acordou dois dias depois com o som da campainha que a fez abrir os olhos e pensar em Alexandra. Correu at\u00e9 a porta, mas se frustrou com a figura de sua assistente que n\u00e3o escondia o susto de ver aquela express\u00e3o p\u00e1lida, olhos inchados, avermelhados, sem for\u00e7a, sem brilho.<\/span><\/span><\/span> <\/p>\n<\/div>\n

_ O que houve com voc\u00ea?
\n<\/span><\/span>_ N\u00e3o houve absolutamente nada. Agora v\u00e1 embora.
\n<\/span><\/span>Mas ela insistiu, foi f\u00e1cil passar por Anne que estava visivelmente cansada e sem for\u00e7as. O lugar estava um lixo. Tudo quebrado. Fora do lugar.
\n<\/span><\/span>_ O que foi que aconteceu aqui Anne?
\n<\/span><\/span>_ Eu j\u00e1 disse que n\u00e3o aconteceu nada. Agora v\u00e1 embora. Eu n\u00e3o te chamei aqui…
\n<\/span><\/span>_ Faz dois dias que voc\u00ea n\u00e3o aparece no atelier. Eu estava preocupada. Me deixa cuidar de voc\u00ea. Eu arrumo tudo aqui…
\n<\/span>_ Voc\u00ea \u00e9 uma figurinha t\u00e3o deprimente. Vive se esgueirando a minha volta. Faz de tudo pra que eu te perceba. Mas eu n\u00e3o te percebo. Voc\u00ea n\u00e3o \u00e9 nada. N\u00e3o \u00e9 ningu\u00e9m… Agora v\u00e1 embora, de vez. Nem se d\u00ea ao trabalho de aparecer no meu atelier. Eu n\u00e3o te quero l\u00e1 tamb\u00e9m…<\/span><\/span><\/span> <\/p>\n<\/div>\n
Mas a jovem assistente n\u00e3o levou em considera\u00e7\u00e3o aquelas palavras. Arrastou Anne para o banheiro, onde tirou suas vestimentas, obrigando-a a tomar um banho, enquanto arrumava a cama, abria as janelas daquele lugar que cheirava mal. Removeu as roupas de cama, trocando por novas e perfumadas. Preparou um ch\u00e1 preto com torradas e gel\u00e9ias, obrigando-a a comer.<\/span><\/span><\/span> <\/p>\n<\/div>\n
_ Eu n\u00e3o estou com fome.
\n<\/span><\/span>_ Precisa comer alguma coisa.
\n<\/span><\/span>_ Eu n\u00e3o quero…
\n<\/span><\/span>_ Mas vai comer. Nem que eu tenha que enfiar isso na sua boca e te obrigar a engolir…<\/span><\/span><\/span> <\/p>\n

O tom amea\u00e7ador fez Anne recuar, comendo duas torradas e tomando o ch\u00e1. Foi tudo. Ela acordou dias depois. Quase tudo estava de volta ao seu lugar. Aquela menina petulante havia arrumado suas coisas, jogado o que estava quebrado fora. Mas ainda restava ela que estava em cacos…<\/span><\/span><\/span> <\/p>\n<\/div>\n

_ Bom dia.
\n<\/span><\/span>_ Cad\u00ea a Alexandra? Onde ela est\u00e1?
\n<\/span><\/span>_ Eu n\u00e3o sei…
\n<\/span><\/span>_ Que dia \u00e9 hoje?
\n<\/span><\/span>_ Quinta-feira. Voc\u00ea dormiu durante tr\u00eas dias…
\n<\/span><\/span>_ Meu corpo est\u00e1 me dizendo isso. Eu estou com fome.
\n<\/span>_ Isso \u00e9 \u00f3timo. Eu vou preparar um desjejum bem caprichado pra voc\u00ea. Me d\u00ea alguns minutos. Por que n\u00e3o toma um banho enquanto isso? Veste roupas novas e depois a gente pode caminhar. Vai te fazer bem…<\/span><\/span><\/span> <\/p>\n<\/div>\n
\"\"<\/span><\/a><\/span><\/div>\n
Anne seguiu os conselhos de Eliana que ela chamava de \u201cLiana\u201d. Ela era uma jovem abusada. Gostava de antecipar os passos de Anne. Sabia que tipo de lente iria usar. O tipo de luz que gostava e conhecia de cor todos os trabalhos feitos por ela desde o inicio. Era esfor\u00e7ada. N\u00e3o se incomodava com os desaforos disparados em sua dire\u00e7\u00e3o e estava sempre por perto se precisasse defend\u00ea-la.<\/span><\/span><\/span> <\/p>\n<\/div>\n
Naquela manh\u00e3, enquanto caminhavam – Eliana soube silenciar ao perceber que Anne estava se ausentando de sua por\u00e7\u00e3o humana. Um fio condutor parecia lev\u00e1-la para longe de tudo. Era a primeira vez em dois anos que ela se sentia de fato pronta pra sua arte. Estava vivendo tudo at\u00e9 a exaust\u00e3o. At\u00e9 que seus m\u00fasculos e nervos n\u00e3o mais suportassem e s\u00f3 fosse poss\u00edvel um desfecho: riscos p\u00e1lidos numa folha em branco que interpretariam todos os movimentos vividos at\u00e9 ali. Anne descobriu nas sombras o sentido que at\u00e9 ent\u00e3o lhe faltava.
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>> continua em 21\/02\/2011<\/span><\/strong><\/div>\n

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