{"id":449,"date":"2011-02-21T11:16:00","date_gmt":"2011-02-21T14:16:00","guid":{"rendered":"http:\/\/minhasmares.com.br\/?p=449"},"modified":"2011-11-04T08:01:40","modified_gmt":"2011-11-04T10:01:40","slug":"e-pifanias-cap-27","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/minhasmares.com.br\/e-pifanias-cap-27\/","title":{"rendered":"E-pifanias. Cap 27"},"content":{"rendered":"
Por <\/span><\/span>Lunna Guedes<\/span><\/span><\/a><\/strong><\/p>\n <\/span><\/span><\/a><\/p>\n \n \n Ela temperou o ch\u00e1 com a\u00e7\u00facar, sentou-se diante da janela e ficou l\u00e1, pela primeira vez ela era o seu pr\u00f3prio horizonte. Sua ci\u00eancia. Todas as dire\u00e7\u00f5es terminavam ali. Havia um misto de saudades em sua derme. Seu corpo ainda sentia os bra\u00e7os de Anne envoltos ao seu. O primeiro sorriso ainda insistia em permanecer na moldura de sua mente e os movimentos, os mais coerentes estavam todos presentes. As palavras se precipitavam em seus ouvidos. Se n\u00e3o era amor, era o que ent\u00e3o? Indagava-se enquanto aquecia as m\u00e3os com o calor da x\u00edcara que interrompia seus pensamentos por um segundo. Um gole\u2026 E tudo voltava, naquele sil\u00eancio inquietante. Sua pele parecia anestesiada. Seus olhos tinham l\u00e1grimas, mas ficavam por ali mesmo. Seus passos estavam mais lentos. H\u00e1 quase duas semanas, ela n\u00e3o tinha not\u00edcias de Anne que estava vivendo um surto criativo.<\/p>\n V\u00e1rias vezes, os passos de Alexandra a levaram at\u00e9 o atelier da Vila Madalena, mas ela ficou ali, parada do lado de fora. Faltou coragem para entrar. Voltou ao apartamento duas, tr\u00eas, quatro vezes. Sempre silencioso e agora com contornos estranhos. A aus\u00eancia faz cada coisa. Ela sentiu os m\u00f3veis da sala com as m\u00e3os. Respirou fundo. Recolheu algumas coisas suas que ainda estavam por ali e quando foi pegar o que ainda tinha de roupas naquele guarda roupas, acabou perdida nas lembran\u00e7as daqueles in\u00fameros vestidos. Todo ano era a mesma coisa, o mesmo pedido, a mesma resposta, a mesma recusa.<\/p>\n Diante do espelho e de posse de uma daquelas vestimentas. Ela observou a si mesma e tentou imaginar-se com aquela pe\u00e7a. A careta de descaso era a resposta. Mas mesmo assim, ela despiu-se parcialmente para vestir aquela pe\u00e7a de cores amenas: branco com pequenas flores laranjas, amarelas, vermelhas. Ela se sentiu uma menina. Teve outras lembran\u00e7as: dessa vez da cidade onde durante anos morou. Foi como voltar no tempo e ver todas aquelas pessoas observando-na e dizendo nos ouvidos uma das outras as fofocas de sempre. O sorriso n\u00e3o pode ser contido. H\u00e1 tempos que Teodoro Sampaio n\u00e3o tinha espa\u00e7o em suas lembran\u00e7as. Sua m\u00e3e ainda estava l\u00e1 e pela primeira vez em muito tempo, ela sentiu vontade de retornar aquele cidade para rever aquelas paisagens.\u00a0 Mas uma certeza cresceu em sua derme \u201cdeve estar tudo como antes. Nada saiu do lugar\u201d.<\/p>\n Seus \u00faltimos movimentos naquele apartamento foram no sentido de colocar as roupas que iriam para a lavanderia numa sacola de papel e levar. O resto estava numa caixa e pronto. Antes de sair em definitivo dali, um ultimo olhar, uma \u00faltima saudade e um lamento em tom ameno, t\u00edpico de quem recria mem\u00f3rias a cada meio segundo. Por fim, a porta se fechou atr\u00e1s dela, a chave girou no tambor, o elevador chegou ao andar e tudo foi ficando lentamente para tr\u00e1s. O \u00faltimo gesto foi o de entrega da chave para o porteiro que lamentou sua partida e foi gentil o bastante em abrir primeiro a porta de entrada que naquele momento era de sa\u00edda e posteriormente a porta do carro que a levaria dali, talvez para sempre. Alexandra parecia dizer para si mesma \u201cn\u00e3o era pra ser assim\u201d.<\/p>\n A cidade fora de foco naquela manh\u00e3 esbranqui\u00e7ada, \u00famida, foi ficando para tr\u00e1s. N\u00e3o que ela percebesse aquelas paisagens que nos \u00faltimos dias eram as mesmas e nada lhe diziam. Transito parado. Pessoas atravessando de um lado para o outro. Crian\u00e7as vendendo doces. Jovens fazendo malabarismos. Quantos cora\u00e7\u00f5es partidos no meio daquilo tudo? Perguntava-se ela que finalmente conseguiu sorrir enquanto batia a m\u00e3o no volante do carro. Esqueceu-se rapidamente da falta de movimento do lado de fora, puxou o notebook da bolsa e se dedicou a meia d\u00fazia de linhas.<\/p>\n \u201cN\u00e3o sei se o desenho serve pra agora. Pode ser precipitado. Pode conter algum engano. Mas tudo parece um sonho, desses em que a gente acaba e fica em d\u00favida se foi real ou n\u00e3o. Minha pele est\u00e1 agitada. Mas as vezes fica quieta e parece reclamar dos meus passos seguintes. N\u00e3o sei o que sinto de fato. Desconhe\u00e7o essas emo\u00e7\u00f5es todas. Mas me vejo coberta por \u201csaudades frescas\u201d, os banhos dividindo o chuveiro, o sabonete percorrendo teu bra\u00e7o enquanto meus olhos percorrem os teus. Tudo precipitando-se aqui e e agora, em meio a transito que n\u00e3o sabe o que \u00e9 movimento. Nossas conversas cheias de risadas gostosas parecem se repetir. Eu quero chorar, mas as l\u00e1grimas n\u00e3o saem dos olhos. Eu quero me libertar da sensa\u00e7\u00e3o de vazio, mas as aus\u00eancias s\u00e3o tantas nesse momento que parece que tudo dentro de mim foi removido: os \u00f3rg\u00e3os todos. As veias. Os m\u00fasculos. Os nervos. Tudo oco. Restou apenas a pele p\u00e1lida, fria que sente falta das car\u00edcias da meio noite, dos olhares do meio dia. Agora tenho medo de n\u00e3o ser capaz de sentir mais nada. Eu sei que \u00e9 um tanto precipitado pensar assim, mas desde que acordei na manh\u00e3 de hoje que estou me precipitando em movimentos ilus\u00f3rios, imagin\u00e1rios e talvez devesse mesmo fechar os olhos para abr\u00ed-los e perceber que \u00e9 um desses sonhos estranhos que ficam na gente durante algumas horas, as vezes um dia inteiro, mas voc\u00ea em algum momento se convence de que tudo passou\u201d\u2026<\/em><\/p>\n O dia se demorou. Parecia n\u00e3o querer se definir. A reuni\u00e3o foi inquietante. Faltavam movimentos da sua parte. Os olhares em sua dire\u00e7\u00e3o pareciam surpresos. Aquele vestido surpreendia. Ela parecia uma menina. Parecia de f\u00e9rias a caminho do parque. Sua mente n\u00e3o confeccionava id\u00e9ias, s\u00f3 havia espa\u00e7o para aus\u00eancias. O esfor\u00e7o parecia em v\u00e3o. Mas era preciso. Foi ent\u00e3o que um estalo simplesmente p\u00f4s fim a todas aquelas insanidades \u201cacabou, e agora?\u201d.<\/p>\n _ Todo mundo um dia sentiu o sabor amargo de um relacionamento que chegou ao fim. Artista ou n\u00e3o. Podemos falar disso. Soube que os escritores quando terminam uma hist\u00f3ria, sofrem com a aus\u00eancia de seus personagens. N\u00e3o deve ser diferente com o ator que finaliza uma pe\u00e7a, uma novela. Ou at\u00e9 mesmo com um leitor que chega ao fim do livro. Ao trabalho meninos e meninas\u2026<\/p>\n E o pequeno texto daquela manh\u00e3 que ocupava o seu blog foi devidamente editado e transformado em editorial para a pr\u00f3xima edi\u00e7\u00e3o. O sorriso havia voltado. Os movimentos tamb\u00e9m. Ritmo retomado e no final da tarde a vontade de andar pela cidade para colecionar cores, sabores e sensa\u00e7\u00f5es. O tempo era outro. E no dia seguinte haveria uma nova marcha. Vinte e cinco anos contabilizados, mas Alexandra s\u00f3 gostava de contar os \u00faltimos cinco\u2026 Ela pensou em comprar um bolo daqueles de padaria, mas riu no meio da rua de sua pr\u00f3pria id\u00e9ia. Pareceu tola demais de repente. Mas acabou comprando um doce de chocolate, recheado com doce de leite e com uma cereja no meio.<\/p>\n _ Voc\u00ea teria a\u00ed uma dessas velinhas de anivers\u00e1rio?
\n_ Quer cor a senhora deseja? Temos branca, azul e rosa?
\n_ Eu fico com a azul. Voc\u00ea coloca pra mim no doce, mas n\u00e3o tira a cereja.
\n_ Tudo bem.<\/p>\n