Por Lunna Guedes

epifanias

image Naquele fim de tarde nublado, preguiçoso que exibia ruas úmidas com algumas poças pinceladas pelos caminhos Alexandra segurava em suas mãos um pequeno papel que mais parecia um mapa: nomes de ruas, possíveis direções e algumas orientações feita por Mariana ou simplesmente Mari que era uma mãe cheia de cuidados.

Ela acompanhou a “filhota” até o táxi e mesmo tendo verificado inúmeras vezes as anotações feitas por Alexandra, deu orientações especificas ao taxista, entregando a jovem o próprio celular para evitar contratempos.

Tão logo o táxi deixou a casa de família Mendelson, Alexandra se perdeu em meio à paisagem urbana da paulicéia. Seu olhar parecia capturar cada cena, cada paisagem que descobria pelos caminhos que pra ela nunca eram os mesmos:

“São Paulo é esse monstro de elementos vários: o humano é um susto constante com movimentos desordenados, descuidados e às vezes inocentes; o concreto é um contorno alucinado de formas que se fazem e desfazem de um instante para o outro. Basta um piscar de olhos e os templos se convergem em figuras modernas e comumente abençoada por um Deus que parece aplaudir seus delírios urbanos. Eu já vi muita coisa e sei também que ainda não vi coisa nada. Falta-me tempo e força para desbravar tantas paisagens. Por hora me contento com o silêncio de meus pensamentos que me levam de encontro aos pretéritos dessa esfera”.

E alguns minutos mais tarde o táxi parou em frente aquele velho prédio nos Jardins. Aquele prédio já havia ocupado diversos tipos de comércios antes; mas agora era uma galeria, uma das mais conhecidas da cidade. Do lado de dentro, paredes rústicas com seus tons de tijolo queimado e lâmpadas amarelas davam um ar colonial para seus interiores. Algumas plantas, pedras e um piso de vidro que permitia realces inusitados completavam aquele cenário que naquela noite trazia ainda algumas cadeiras no centro de cada cômodo, cuidadosamente alocada para servir de figuração. Sobre elas, algumas imagens se amontoavam.

Assim que entrou, uma jovem entregou a ela o folder da exposição e lá estava a mulher responsável por sua presença naquele lugar tão cheio de ausências que pareciam esperar por convidados para se preencher com os vazios alheios. Anne Letrech tinha pouco mais de trinta anos e há onze anos ocupava-se de encantar os olhos alheios com sua arte, era o que dizia sua breve biografia. Mas a sua imagem dizia muito mais: parecia ser alguém forte, determinado. Seus cabelos grisalhos conferiam a ela um charme natural, o sorriso pequeno, meio que para dentro, determinava a ausência de exteriores. Era uma figura desértica e disso Alexandra entendia como poucos. Elegante, impactante e suavemente arrogante; mas havia algo mais naquela estranha figura que havia causado certo impacto nos olhos de Alexandra que logo se desviou daquele folder para apreciar cada centímetro daquela exposição que tinha como fundo uma música de Bach.

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A exposição “urbanicidade” exibia uma combinação perfeita dos elementos naturais de uma cidade e o humano como sendo um paralelo às vezes necessário, às vezes completamente desnecessário. Em uma das fotos, havia uma seqüência de pessoas cabisbaixas a esperar pelo metrô na plataforma da estação Sé. Ali se desenhavam desejos ocultos e sensações inéditas. Tão próximos um do outro e ao mesmo tempo completamente distantes, ausentes… A fotografia causou um instante de reflexão, afinal, ela vinha de uma cidade onde todos pareciam ir numa mesma direção e ali havia muitas possibilidades…

Cada detalhe apresentado foi sendo colhido por Alexandra que não percebeu em dado momento a presença da artista que registrava cada um de seus movimentos com sua câmera. Aqueles movimentos lentos, descuidados era um mundo dentro daquele mundo que ela havia inventado e era preciso ser registrado, embora em sua pele houvesse o desejo de se aproximar e saber das sensações que permeavam a pele da menina que vez ou outra dominava os cabelos rebeldes, prendendo-os atrás das orelhas em movimentos, esses sim: rápidos, como se quisesse domar o que até então fugia de seu controle.

imageAnne reparou quando Alexandra anotou meia dúzia de palavras em um pequeno caderno e sua curiosidade quase a arrastou para junto dela a fim de saber o que transcrevia naquele instante em que seus olhos observavam a última fotografia exposta que exibia uma mulher de frente para uma janela onde a cidade se exibia no reflexo do vidro. Possíveis sons e movimentos se desprendiam daquela paisagem que parecia inventada. Era tão fácil imaginar os elementos urbanos ali naquela cena que era vista do alto, mas quem de fato via? A modelo da foto, o fotógrafo ou quem visitava a exposição? A dúvida talvez fosse o elemento extra deixado pela artista que tentava aguçar a curiosidade de quem ali fizesse uma pausa em seu cotidiano. Era um atrevimento e talvez por isso fosse tão fascinante. A imagem do rosto da mulher parecia se repetir duas ou três vezes por um efeito inusitado que causava a sensação de inconsciência ou de falta de conhecimento da própria figura. Os olhos mais apagados revelavam o desejo de não ver aquilo que lhe alcança na escuridão da noite. A luz do lugar criava formas no vidro, impedindo a visão da cidade por completo que parecia um círculo no qual se vive ou não.

Alexandra deu mais alguns passos pela galeria e por fim se dirigiu a porta de entrada que agora tinha contornos de saída. Ela agora estava imersa numa escuridão peculiar que só iria desaparecer quando a luz de suas idéias finalmente florescesse. E quando já estava do lado de fora com o olhar atento a rua em busca de um táxi ouviu seu nome ser pronunciado as suas costas “Alexandra Mendes?” – o som agradável daquela voz a fez virar-se imediatamente e tal não foi sua surpresa ao reconhecer Anne Letrech.

_ Boa noite. – disse ela vestindo um tom de satisfação todo natural.
_ Anne Letrech?
_ Muito prazer. – repentinamente ocorreu um sorriso ameno naqueles lábios contornados por um batom cor de pele. _ Custo a crer que esteja indo embora sem dizer-me uma só palavra. Não faz idéia do tamanho da curiosidade quanto ao que sentiu lá dentro…
_ Quanto a isso, eu lamento, mas terá que aguardar um pouco mais. Ainda estou anestesiada…
_ E isso significa o que exatamente? É bom ou ruim?
_ Só me sinto assim quanto algo de fato toca a minha derme profundamente; saltando a superfície e indo de encontro ao meu âmago…
_ É delicioso ouvi-la, quase tanto quanto ler suas palavras. Você é exatamente como eu imaginava: uma extensão de si mesma. Fascinante.

Alexandra constrangeu-se e novamente brigou com seus cabelos, levando-os para trás de suas orelhas num movimento meio desordenado que fora cuidadosamente apreciado por Anne que parecia estar aprendendo lentamente aquela figura tão cheia de ausências e rompantes.

_ Será que posso fazer mais um convite a você?
_ Outra exposição?
_ Não. Apenas um café num desses barzinhos agradáveis de São Paulo com mesinhas na calçada. O calendário anda dizendo que é verão, mas a cidade de São Paulo nunca faz questão de dar atenção a isso como pode perceber. Moro aqui há décadas e ainda me surpreendo com tudo que vejo e sinto ao caminhar por essas ruas. E você?
_ Aceito o convite.

Anne achou graça daquela atitude repentina. Era como se Alexandra simplesmente desejasse esvaziar aquela conversa, concentrando-se no óbvio: o convite. E lá foram as duas pela calçada em direção a um café aconchegante no final do quarteirão. O silêncio marcou presença entre elas porque Alexandra ainda revisitava cada cena presenciada enquanto Anne observava atentamente aquela figura humana tão cheia de nuances…

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>>> continua…

Próximo capítulo 05/01/2011