Por Lunna Guedes

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Capítulo I – Epifanias

image “Aquela era uma cidade de meia dúzia de ruas, uma praça com dois ou três bancos, uma igreja com sua famosa escadaria por onde todas as senhoras haviam descido no dia de seus casamentos para receberam sobre suas cabeças punhados de arroz que consagravam o único e mais importante momento de suas vidas. As fotos feitas pelo único fotógrafo da cidade ficam lá na parede do estúdio como forma de narrativa eterna. Há quem visite o Paulo Fotos apenas para manter viva a lembrança que depois de alguns anos começa a falhar, como se uma fina névoa fosse cobrindo aos poucos aquele momento. Mas a foto permanece lá, intacta, ano após ano, contando sempre a mesma história…

Do bar do seu José a quitanda da Dona Mercedes tudo se faz e se diz sem que nada escape dos ouvidos e olhares atentos dessa gente que parece gostar das lembranças narradas por aquelas fotografias que me deixam triste. Pra mim é como se essa inteira vivesse no passado. O presente por aqui é uma metáfora imprecisa e futuro é um pleonasmo e nada mais…

Aquela era sem dúvida uma cidade do interior onde os passos são sempre os mesmos e a única coisa que muda de fato é o calendário na parede, mas com o passar dos anos parece que nem ele muda mais: sempre os mesmos números pares e impares narrando semanas, dias e meses…

A pequena cidade de Teodoro Sampaio nem mesmo aparece no mapa de São Paulo e sempre tive dúvidas quanto a ser de fato uma cidade; mas temos a nossa prefeitura, o nosso prefeito; nossa delegacia e o nosso delegado que conta com a ajuda de três bons homens para resolver casos complicados como o roubo de laranjas na plantação de seu Florisvaldo e das galinhas na granja da dona Leonor. A maior parte das pessoas que vivem nessa cidade trabalha pra eles de segunda a sexta; no sábado se faz churrasco e no domingo se vai a igreja…

Eu sei que não nasci aqui, mas a minha primeira lembrança é da rua onde moro, e das crianças (que nunca foram iguais a mim) a correr enquanto brincavam de pique pega, pique esconde. Eu nunca participei de seus contos de fadas. Sempre espiei essa gente da mesma forma que eles espiam a mim: com indiferença. E sempre que levanto pela manhã e abro a janela do meu quarto, observo a linha do horizonte e sei que é pra lá que eu preciso ir, mas às vezes tenho a sensação de que todos os caminhos que eu percorro e não importam para qual direção apontam; sempre me devolvem a pequena cidade de Teodoro Sampaio, esse lugar tão cheio de pretéritos”…

Em meio a tantos alunos e suas divagações, o sinal da campainha que soava avisando o final da aula, soava como um despertador para aquela jovem de cabelos sobre os ombros, cujo olhar se voltava sempre para o horizonte daquela cidade. Ela se sentava na primeira carteira da fila próxima a janela e vez ou outra seu olhar se perdia no céu que se exibia para ela como se fosse a única naquela cidade inteira a notá-lo.

Ela nem sempre tinha pressa, demorava-se a guardar seus pertences e às vezes encontrava um minuto a mais consigo mesmo naquele ambiente tão comum a ela. Seu olhar corria as linhas cheias de palavras recém escritas, como se fosse possível se ausentar daquela maldita realidade que a sufocava diariamente.

Aquele caderno de capa preta era uma espécie de amigo silencioso… Aquele era apenas um de seus muitos mistérios: escrever para ela era uma espécie de diálogo intimo e pessoal, completamente livre de julgamentos e condenações, algo comum naquela cidade que olhava pra ela de soslaio e não escondia o incomodo que ela causava em sua gente, afinal, ser diferente ali, não era uma opção possível.

Em alguns momentos, Alexandra encenava uma falsa pressa necessária em seus passos para fugir daqueles malditos diálogos humanos que faziam dela o maior espanto daquela cidade, afinal, ela não comungava dos mesmos objetivos, crenças e obrigações daquela gente e era como se ao ser diferente, ela simplesmente agredisse aquelas pessoas que pareciam indagar-se “como ela consegue ser desse jeito?”- sua atitude era considerada inadequada, imprópria, uma verdadeira afronta… Mas Alexandra não se importava com as diferenças cantadas por todos ali: aos dezesseis anos ela ainda não tinha um namorado, não estava preparando seu enxoval e não se mostrava disposta a ajudar o pai no bar que era o patrimônio daquela família “pobre Zé, tem uma filha ingrata que não dá valor aos seus esforços. Como ele vai fazer para manter aquele lugar quando não tiver mais forças? Se ela pelo menos despertasse o interesse de algum rapaz, mas nem pra isso ela se esforça” – comentavam as mulheres da cidade umas com as outras, mas o assunto era deixado de lado sempre que a “pobre” mãe de Alexandra chegava para a novena que era um meio tradicional de ir às casas uma das outras com as benções de Deus “sua filha não veio Maria?” – a pergunta era sempre a mesma e a resposta era obvia, afinal, ela nunca participava das rezas. O tempo livre que tinha era ocupado com livros, cadernos e ilusões pessoais que ficavam trancadas na gaveta da mesa de seu quarto. Ela tinha muitos segredos e isso era quase um pecado naquela cidade.

imageAlexandra Mendes era uma pessoa solitária; não tinha amigos e não se adequava ao ritmo (quase parado) daquele lugar. Ela sentia falta de movimentos, de um lugar para onde pudesse ir para admirar a própria sombra; muitas vezes sentia falta de si mesma e ao se olhar no espelho, mergulhava numa espécie de busca que parecia não levá-la a lugar algum e isso produzia turbulências na pele daquela menina que cerrava os punhos e tentava conter o grito em suas entranhas. Suas veias cuspiam uma revolta natural que se espalhava por seu corpo inteiro em frações de segundos; as lágrimas se multiplicavam por sua face e a vontade de quebrar tudo que encontrava pela frente parecia impossível de ser contida, mas ela respirava fundo como se buscasse forças para conter sua própria ira: engolia aquele desespero natural que produzia vibrações inusitadas em sua pele e tentava insistentemente evitar aqueles atos que eram constantemente encenados em sua mente. Ninguém percebia absolutamente nada. O silêncio que ela imprimia em sua derme era a única coisa que aquelas pessoas colhiam…

Havia momentos em que a exaustão a levava a uma espécie de fuga e o único lugar onde ela desejava estar era a Represa do Doca, lugar onde ela passava horas inteiras mantendo aquele dialogo insensato com uma simples folha de papel em branco.

“Numa cidade onde sonhos são quase proibidos, o menino Doca de sorriso confuso e de retardamento dado como certo por essa gente, tinha vontades e desejos que destoava da maioria. Ele queria ir além dos muros da cidade e mergulhar de cabeça naquele sonho que nutria desde a infância: ser mergulhador. Eu sempre o via nadando nas águas opacas da represa que até as chuvas de janeiro não tinha um nome. Era apenas represa, mas depois das famosas chuvas de janeiro; passou a ser a Represa do Doca. Dizem por aqui que o menino que queria ser mergulhador foi nadar nos dias de cheia e nunca mais voltou. Até hoje o usam como exemplo. O Doca é símbolo do perigo que os sonhos podem representar em nossas vidas. Eu prefiro pensar que o sonho dele o salvou dessa gente e espero que o mesmo aconteça comigo”…

Havia certas manhãs em que Alexandra simplesmente levantava, olhava para o horizonte daquela cidade, pegava sua velha bicicleta e pedalava até onde conseguia ir. Em seu íntimo, ela desejava não mais volta… Mas pedalar por uma longa estrada de terra que tem de um lado uma plantação de tomates e do outro de laranjas produz um cansaço natural. De repente, era como se não houvesse nada mais além daquele horizonte. Como se fosse impossível ir mais além… Tudo parava e ela ficava ali, olhando para o longe, perdida em seus próprios desesperos e quando voltava a si, estava em casa, sentada diante da janela, observando o mesmo horizonte de antes…

Um pouco depois daquele cenário emoldurado estava Monte Mor, outra pequena cidade, mas ao menos ali, os horizontes não pareciam silenciar o olhar e conter os sonhos. De lá, partiam ônibus cujo destino era Campinas que era o mais próximo de uma cidade de verdade que Alexandra conhecia e era justamente onde morava um de seus muitos sonhos: a Universidade de Campinas, onde ela pretendia cursar Letras. Aquele desejo era uma espécie de passagem rumo aos movimentos tão desejados por ela…

No começo do ano seguinte, a notícia de sua aprovação correu a cidade em frações de segundos e durante dias foi o assunto discutido por todas aquelas pessoas que pareciam não entender a euforia explicita no olhar daquela figura“Pra que fazer faculdade? Ela não precisa disso para cuidar do bar do pai” – diziam uns, enquanto outros davam de ombros e cuspiam aos quatro cantos a infelicidade de Maria e José “eu é que não queria ter a infelicidade de ter aquela menina ingrata como filha. Tenho pena dos pais dela” e havia alguns que chegavam ao exagero de fazer o sinal da cruz ao se encontrar com a menina sem juízo “eu sei o que vai acontecer com ela: vai ser perder e vai ficar igual essas meninas da cidade: sozinhas e com um filho na barriga. É o que acontece lá fora”…

Alexandra que nunca foi bem quista por aquelas pessoas, repentinamente passou a ser a representação do demônio naquela cidade e suas ações era um visível perigo para os outros jovens, afinal, como seria se mais algum jovem tivesse a infeliz idéia de seguir os mesmos passos dela?