Por Lunna Guedes

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image  “o dia amanheceu nublado na pacata cidade de pessoas curiosas. A rua está molhada e os bancos da praça também. Menos gente para falar da vida alheia. Hoje as casas estão ocupadas e acho que as linhas telefônicas também. Não sinto cheiro de outra coisa no ar que não o de chuva caindo junto a paisagem que parece mais leve e muito mais feliz. Alguns guarda-chuvas passeiam de um lado para o outro: são mães (contrariadas) levando seus filhos para a escola. São maridos (contrariados) arrastando-se para o trabalho. Eles levam na pele o desejo de ficar em casa, enquanto elas embalam o desejo de ir lá para fora varrer a calçada e encontrar a vizinha do lado para cantar em prosa a vida alheia. Que vida mais besta essa”…

Os dias se amontoavam ao redor de Alexandra que seguia sua rotina de observar o horizonte e esperar o momento de seguir por aquela longa estrada que podia ser vista da janela de seu quarto que era o único lugar onde ela se sentia de fato alguém. Ali havia uma cidade inteira com suas vilas, ruas e pequenas catedrais; muitas pessoas viviam ali e ao lançar seu olhar pela janela, a realidade alheia a visitava através das palavras que abandonava naquelas folhas pálidas de amarelecido tempo.

“As palavras no papel são coisas que ficam por um tempo a mais em nós. Lá fora o insano grita muito mais exigente e eu finjo ouvi-los porque sei exatamente como são suas tempestades. Eles inventam raios e trovões para que as pessoas se assustem com a possibilidade da chuva; acontece que eu sempre fui mais feliz nos dias de chuva pelo caminho. Mas admito: eu sei muito bem o perigo que o horizonte dessa cidade representa para muitos daqui”.

Aquela fina narrativa revelava que Alexandra flutuava por cima de todas as coisas e não se ocupava das bobagens que aquele mundo trazia até sua porta. Ela não dava a mínima para o bar de sua família para onde os homens daquela cidade se dirigiam as quartas e domingos para ver as partidas de futebol que parecia ser a única diversão de suas vidas; ou para as partidas de cartas as sextas, das quais até o padre participava e sempre vencia uma ou outra rodada. Eles voltavam para casa em meio a uma incomoda cantoria desafinada que gerava reclamações pelo caminho. Era a vida daquela cidade. Era o tempero noturno das noites de verão, primavera, outono e inverno… Às vezes parecia que algumas mulheres reclamavam apenas para cumprir uma espécie de ritual que remontava os anos. Alexandra achava graça, mas as vezes dava de ombros e ficava satisfeita e feliz ao perceber que ela era uma sombra que ficava pelo caminho apenas nos dias de sol e como estava sempre por lá, ninguém mais reparava em suas linhas.

“Fiquei mais velha há pouco. Ninguém se lembrou, nem mesmo meus pais. Sensação boa essa de ser esquecida por todos. Eu gosto de não ser lembrada. O vazio que existe a partir disso me alimenta e me leva para os cantos onde eu gosto de estar. Não sei, mas tenho pra mim que a solidão é minha alma gêmea. Já posso imaginar as manchetes:“Alexandra Mendes e seus cem anos de solidão”…

Ela não participou da festa de formatura no colégio, ficou em casa com meia dúzia de caixas de papelão se desfazendo de seus cadernos e livros colegiais, guardando coisas antigas e ficou espantada ao perceber que sua vida inteira se resumia a míseras seis caixas de papelão…

Aos poucos a melancolia saltou para sua derme que se viu anestesiada diante de tantas lembranças. Muitas delas estavam esquecidas em algum canto de sua mente, mas repentinamente pareciam saltar para cima da cama, da mesa, pelo chão, pelas paredes… E o mais espantoso era que todas aquelas lembranças produziam o inesperado: um medo incessante e crescente que a fez buscar pela imagem conhecida de sua janela: a velha estrada que era apenas um degrau na sua longa escalada para se salvar daquelas vilas.

“preciso dizer que estou sepultando meu fim. Acabou. A minha vida inteira coube dentro de algumas caixas de papelão. Isso é tão deprimente. Não sei se o que sinto agora é revolta por me sentir tão pequena, limitada, igual a essa cidade e sua gente que não vê nada além dos muros de Teodoro Sampaio. Não sei o que sinto de fato é felicidade por saber que meus sonhos não estão ali naquelas caixas. Porque meus estão todos aqui em mim e vivem intensamente. Não sei o que sinto de fato, mas minha pele está dormente e tremula como se o amanhã fosse ficar lá, feito aquele horizonte, que há anos se exibe para a minha janela sem nunca se aproximar do fato. Eu queria na verdade, deitar minha cabeça no travesseiro e adormecer até ser o dia 16 de fevereiro e ter certeza que a vida não vai me levar para o fundo da Represa do Deco”…

E tudo que ela fez nos dias seguintes foi riscar os dias no calendário da parede de seu quarto que dias depois, como de costume foi substituído. O horizonte continuava lá a limitar seu olhar e toda aquela gente continuava agindo como de costume e seria estranho se não fosse assim:

“a senhora vai cedo, com suas sacolas de renda e o menino do lado direito. Ela segura firme a mão do menino o tempo todo, como se ele pudesse fugir a qualquer momento. Mal sabe ela que um dia, todos eles fogem e a maioria, definitivamente não volta. Lá vai ela no meio da rua, com seu passo firme, apressado, com seu vestido de pregas, feito em casa. O marido tem outra, mas isso ela não sabe ou finge não saber por que sempre que se encontra com a outra, vira a cara e depois corre para a igreja a fim de confessar seus estranhos desejos; e acaba ajoelhando-se por lá mesmo para cumprir sua sentença”…

image Naqueles últimos dias, Alexandra começou a pensar em escrever sobre a vida daquelas pessoas, mas ao correr seus olhos por seu velho caderno de capa negra, percebeu que já tinha escrito muitas epifanias e o sorriso floresceu em sua face como se aquele bendito horizonte que seguia se exibindo pra ela em sua janela tivesse, por alguns segundos, ficado menos distante…

E o dia seguinte finalmente amanheceu para ela que saltou da cama antes do galo cantar para pegar o primeiro ônibus que a levaria de encontro ao seu destino recém traçado… Os olhos colados na janela acompanhavam cada pedaço de paisagem exibida por aquela janela como se precisasse decorar aqueles novos caminhos que a levavam para longe da pequena cidade….

Mas não demorou para que a jovem universitária percebesse que as coisas não eram assim tão diferentes naquele novo mundo: novas salas, novos professores, novos cadernos, novos livros, novos estranhos. Tudo ali era novo, mas trazia estranhamente um leve cheiro de mofo…

>>> continua….

*Próximo capítulo dia 29 de novembro