Por Lunna Guedes

epifanias

image “os olhares eram novos, mas as sensações eram todas antigas. Todas aquelas pessoas passando por mim e eu passando por elas com a inútil sensação de que eu continuo vivendo numa pequena cidade; a única coisa que mudou foi o endereço. Será que é sempre assim? Tudo na vida acaba se transformando numa espécie de pequena Teodoro Sampaio? Será que é inútil desejar fugir desse mundo onde o horizonte é uma grade e essa cidade é a prisão? Deus me livre desse fardo “…

As aulas na faculdade continuavam causando entusiasmos em Alexandra, mesmo depois de tanto tempo. Mas as pessoas que ocupavam seus espaços no campus se pareciam com aquelas pessoas que viviam na pequena Teodoro Sampaio, olhavam pra ela com o mesmo olhar reprovador e ela retribuía com indiferença. Em pouco mais de dois meses, não havia feito nenhuma amizade.

Seu universo se limitava as visitas frequentes a biblioteca, as sombras na área verde do campus e o ginásio onde assistia aos ensaios de uma banda jovem vez ou outra. Ficava difícil saber se o problema eram os lugares, as pessoas ou ela mesma que continuava presa por aqueles muros erguidos a sua volta ao longo dos anos…

Seus dias se limitavam aquela exaustiva jornada que a arrancava da cama às cinco horas da manhã e a conduzia sempre pelos mesmos caminhos… E se nos primeiros dias a paisagem a seduzia, agora já nem chamava mais a atenção. Ela dormia boa parte da viagem ou lia um livro ou outro.

Ao chegar ao campus, seu corpo se misturava aquela multidão que parecia fazer daquele lugar um verdadeiro parque de diversões. Ela, contudo, não tinha tempo para se divertir, era preciso seriedade e dedicação, afinal, naquele lugar estava à chave de acesso para um mundo de verdade: longe daquela ilusão que a sufocava.

Ela fazia planos como quem faz lista de supermercado e um dos seus objetivos era caminhar pela famosa Avenida Paulista que era onde terminava a famosa São Silvestre que ela assistia todos os anos como forma de decorar os endereços e a paisagem urbana da qual ela tanto desejava fazer parte. Ela queria conhecer suas cores, sentir seus ritmos, se impregnar de urbanicidade, de elementos que pareciam serem necessários para que ela se sentisse, de fato, viva.

E por fim, o mês de junho foi descartado do calendário e julho chegou trazendo consigo a maldição da vila que insistia em se agarrar ao seu calcanhar. A ida para São Paulo durante as férias de meio de ano precisou ser cancelada pelo inesperado: a morte de seu pai.

A casa ficou cheia de gente, mas ela não saiu de seu quarto. Praguejava contra o espelho a sua falta de sorte; mas não sentia absolutamente nada quanto àquela novidade. A morte daquele homem só trazia a sua pele uma estranha lamentação por ter que continuar por ali, sem estender seu passo mais adiante.

Enquanto isso na sala, as pessoas ocupavam seus lugares ao lado do caixão que exibia um defunto cuidadosamente arrumado para aquele momento, como se aquele fosse o ápice de sua existência “agora ela vai ter que tomar uma decisão na vida, não vai mais poder se esconder atrás desse negócio de faculdade”- diziam umas as outras como se o destino tivesse tomado uma atitude a fim de obrigar Alexandra a recobrar a razão, perdida, quando ela havia decidido fazer algo diferente dos demais.

“procuro pela paisagem que eu ainda conheço, as vezes penso que vou esquecer dela em algum momento, mas então, abro os olhos e lá está o verde dos pés de tomates e das laranjeiras. Não sei nem quem de fato está naquela sala; porque só hoje me dei conta de que aquele homem não significa nada pra mim. Eu me lembro de vê-lo sentado a mesa do café da manhã, vestindo apenas o seu silêncio. Também me lembro de vê-lo sentado no portão de casa, com seu velho rádio de pilha colado na orelha para melhor ouvir as notícias das vidas alheias. Ele precisava saber o que acontecia lá fora; precisava saber das dores, enganos, erros, frustrações que se abatiam sobre as outras pessoas. Não sei o que de fato significava isso tudo pra ele. Eu nunca soube se em algum dia ele percebeu que tinha uma filha, mas só agora eu estou me dando conta que eu conheci um homem a quem eu devo ter chamado de pai uma dúzia de vezes. Mas o estranho mesmo é que eu não me lembro de um só dia em que ele tenha dado significado real a essa palavra “…

Enquanto escrevia, o olhar de Alexandra voltou no tempo e espaço em busca de algo que a aproximasse daquele homem que seguia sendo um estranho. Ela tinha dezessete anos e só uma lembrança daquele homem que gostava de comer brodo com pedaços de carne, legumes grandes e um cheiro que causava embrulho em seu estômago. Ele sentava-se na ponta da mesa com o prato cheio e comia, sem esperar por ninguém e isso era tudo. Não havia mais nada em sua mente…

Alexandra levantou-se, vestiu as cores do momento. Ao menos uma vez em sua vida, seria igual a todo mundo e assim evitaria mais comentários acerca de sua figura que queria ser esquecida, não ser notada por aquela gente que estava ali apenas para cumprir com suas rotinas pessoais.

“procuro pelo verde que existe dentro do breu e salpico de azul o branco dos olhos dessa gente que olha para o relógio como se tivessem muitas coisas para fazer em suas vidas tão cheias de “entusiasmos”. Embriago-me de um desespero natural que me faz lamentar estar aqui ao lado desse caixão que alimenta a única lembrança possível desse homem que está pálido e frio e ainda assim é alguém, mas a maioria de nós não faz idéia de sua verdade, de sua história que será esquecida, se de fato já não foi, afinal, como esquecer alguém que nunca foi lembrado? Ele nunca me disse que eu não deveria ir por ali, pelo lado certo ou pelo lado errado. Ele nunca me disse coisa alguma. Nunca apontou com o dedo uma possível direção. Ele morreu há algumas horas e eu já me lembro mais do som de sua voz, afinal, era seu silêncio que eu colhia todas as vezes que me percebia próximo a ele. Tudo que eu sei de fato sobre esse estranho é que seu olhar era como a janela de meu quarto”.

Não houve nenhuma lágrima e os comentários que surgiram a partir daquele dia era que Alexandra era insensível “ela não derramou nenhuma lágrima pelo pai” – “como pode uma filha não chorar a morte do próprio pai? Que absurdo isso”…

Na manhã do dia seguinte ela ajudou a mãe a reunir algumas caixas de papelão e foi assim que ela percebeu que a vida de um homem de cinqüenta e seis anos também cabia em algumas caixas de papelão. Ela respirou fundo e teve certeza de que queria muito mais para si mesma.

Alguns dias depois, no começo da noite, Maria entrou no quarto da filha: ela que nunca soube como falar com aquela menina que parecia conhecer muito mais palavras que ela, ficou na porta por alguns segundos, apenas observando o cenário que exibia para ela uma jovem de dezessete anos sentada na cama, se dedicando como de costume a leitura de um livro, coisa que ela nunca tinha feito em toda sua vida e depois de suspirar profundamente disse em tom baixo, como se nutrisse uma espécie de medo em suas entranhas

_ Não precisa se preocupar com as coisas aqui de casa. Minha irmã vai mandar o menino mais velho dela pra cá. O Zé já sabia que aquele bar não era lugar pra você. Durma bem “…

imageE ao terminar, ela fechou a porta, deixando o silêncio do lado de dentro e voltando para seu quarto para assistir a novela das nove como fazia todas as noites. Era sua única diversão e ela ria e chorava com os personagens e se sentia satisfeita com a vida que levava. No fundo, ela não desejava absolutamente anda diferente do que tinha e talvez fosse sentir falta do seu marido, afinal, ela já estava acostumada com o ronco noturno em forma de sinfonia e já nem perdia o sono por causa dos sons emitidos por ele. Os dois pouco conversavam. Ele nunca foi de falar, ela nunca foi de ouvir. Nunca foram apaixonados, mas se suportavam: brigavam duas vezes por ano, sempre no natal e no ano novo. E as brigas sempre tinham os mesmos motivos: ela queria comprar um peru, ele achava um desperdício. Ela queria ir ver os fogos na praia, ele preferia ver na televisão…

Alexandra ficou lá, por algum tempo meditando sobre aquelas palavras e depois se distraiu com o pôster que mantinha na parede bem ao lado da porta que dizia: “covarde vem do francês antigo coart, que significa cauda arqueada: o popular rabo entre as pernas.” A cabeça moveu-se de um lado para o outro e um estranho sorriso brilhou em seus lábios, foi então que ela abandonou o livro e foi até ele, arrancando-o, amassando-o e jogando ali pelo chão. Era como se aquele movimento permitisse a ele uma libertação de seus próprios pretéritos.

_ É passado, não dá pra mudar, mas o futuro vai se disfarçar de presente pela manhã, bem cedo e eu vou estar lá, pronta pra recepcioná-lo“…

>>> continua…

Próximo capítulo dia 01/12/2010

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