Por Lunna Guedes

epifanias

E durante muitos dias, Alexandra desviou o olhar, mudou seus cenários e quando estava na biblioteca, colocava o livro diante dos olhos, afundando-se na cadeira de forma a não reparar nos muitos movimentos a sua volta. E por mais que sua curiosidade quanto a possíveis movimentos por parte daquela estranha fosse uma crescente em sua pele, ela se continha e quando percebia que a tentação era maior que sua resistência, ela guardava suas coisas e procurava outro cenário…

Alexandra chegou a cogitar não freqüentar mais a biblioteca, mas tal idéia não foi adiante porque sempre que tinha algum intervalo em suas aulas, era para lá que ela se dirigia e não havia uma só vez em que não encontrasse aquela jovem que parecia freqüentar aquele lugar apenas para torturá-la. Como era difícil se manter firme em se propósito de não mais dar atenção aquela figura que parecia saltar diante de seus olhos na maior parte do tempo. Ela não era o tipo de pessoa que poderia ser simplesmente ignorada.

Ciente disso: em dado momento, Alexandra pensou em sentar-se de costas para aquele cenário, mas acabou convencida por seus próprios pensamentos que era preciso vencer aquela batalha e diante de tal conclusão, manteve-se ali, com os olhos fixos nas palavras do livro até que sua atenção voltou-se repentinamente para o barulho causado por um livro propositalmente atirado sobre a mesa ocupada por ela. O susto causado por aquela atitude arredia a fez sentar-se corretamente na cadeira de imediato e diante daquele sorriso maroto, desavergonhado, a única preocupação de Alexandra foi olhar ao seu redor para certificar-se de que ninguém a estava observando. Seria muito constrangedor ser flagrada numa conversa com alguém que simplesmente só existia em sua imaginação.

_ É de Eliot, um poeta inglês. Já li várias vezes, mas Eliot é o tipo de poeta que leva uma vida inteira para entendê-lo. Então estou sempre o lendo. Já li centenas de vezes o mesmo poema e sempre acabo sendo surpreendida por alguma coisa que simplesmente havia escapado na leitura anterior.

Alexandra tentou ignorar aquele comentário enquanto repetia pra si mesma “não é real, não é real” como se ao conseguir se convencer de tal “certeza” fosse o bastante para aquela jovem intrometida desaparecer de seu cenário. O corpo de Alexandra estava visivelmente desconfortável. Apenas seus olhos se moviam em meio aquele pânico natural que ela nutria em sua derme; chegando ao absurdo de tentar evitar respirar, mas sem sucesso algum.

Seu olhar observava o mundo a sua volta como se qualquer movimento em falso pudesse gerar uma reação em cadeia por parte de todas aquelas pessoas que ali estavam. Quanta ironia cabia naquela cena, afinal, Alexandra nunca antes em sua vida havia se preocupado com o mundo que insistia em existir do lado de fora do seu.

Mas repentinamente, Alexandra se esqueceu completamente daquela estranha. Seu olhar namorou delicadamente aquele livro e se viu diante de uma triste constatação: ela conhecia tão pouco do mundo que esteve ausente de sua vida ao longo daqueles anos “quem era Eliot?” – perguntava-se ela e a resposta surgia de imediato em sua mente – “Um poeta inglês do qual eu nunca antes tinha ouvido falar”- repetia silenciosamente para si mesma enquanto via surgiu o medo de que aquela jovem ali a sua frente pudesse ouvir seus pensamentos.

Toda aquela cena era muito delicada, pois Alexandra tinha certeza de que aquela jovem que insistia em permanecer parada diante de sua mesa como se esperasse uma resposta ou até mesmo um simples movimento que não acontecia.

Por um instante, Alexandra pensou em tocar o livro para buscar alguma certeza, mas sua mão não se movia. Estava paralisada pelo medo que percorria suas veias.

A calma enfim começou a voltar quando a estranha moveu-se. Aparentemente ela havia desistido e isso a fez respirar aliviada e por fim ela poderia se dedicar ao exercício de busca, mas antes que sua mão alcançasse o livro, a outra realizou um movimento rápido que terminou por surpreender Alexandra que reagiu instintivamente numa fuga que levou suas mãos para debaixo da mesa como se nunca tivessem saído de lá. Seu corpo inteiro recuou naquele movimento.

_ Caso queira saber, meu nome é Rayssa Mendelson…

Ela permaneceu ali, em pé, a esperar pela resposta de Alexandra que nada disse. Mas Rayssa não desistiu, muito pelo contrário, insistiu de forma natural.

_ E você é?

A pergunta produziu um suspiro intenso que obrigou a voz de Alexandra a sair lá de suas entranhas quase em forma de murmúrio que gera certa dificuldade em ser ouvida, mas mesmo assim ouve.

_ Alexandra Mendes.

_ Muito prazer Alex…

_ Eu disse Alexandra. – disse ela, agora num tom mais acima, mais ainda baixo. O medo que mais alguém ali a ouvisse dialogando com alguém que na certa nem estava ali permanecia em sua pele.

_ Eu receio ter ouvido algo parecido com isso… Mas eu gosto de Alex, combina mais com você.

Então Alexandra soube que Rayssa jamais iria chamá-la de outra maneira que não fosse aquela escolhida por ela e se existiu um incomodo inicial, logo ele iria se dissipar… Da mesma forma que se dissiparia a certeza obtida dias antes quando havia acreditado que aquela jovem estranha não era real.

Em meio a um sorriso natural, mas desconcertante, Rayssa voltou ao seu mundo de onde pôde espiar atentamente aquela jovem ocupar-se da tentativa de recuperar sua serenidade, perdida durante alguns minutos. E ali de sua mesa viu Alexandra buscar pelo velho livro sobre a mesa e sentir-se uma tola ao perceber que o livro era real e palpável.

A cabeça dela se movimentou de um lado para o outro numa espécie de negativa que parecia ser uma repreensão imposta a si mesma. Alexandra espiou a capa pálida do livro por alguns segundos e depois se dedicou a folheá-lo até parar numa página qualquer que parecia simplesmente “gritar” para que fosse lida:

E na verdade tempo haverá
Para que ao longo das ruas flua a parda fumaça,
Roçando suas espáduas na vidraça;
Tempo haverá, tempo haverá
Para moldar um rosto com que enfrentar
Os rotos que encontrares;
Tempo para matar e criar,
E tempo para todos os trabalhos e os dias em que mãos
Sobre teu prato erguem, mas depois deixam cair uma questão;
Tempo para ti e tempo para mim,
E tempo ainda para uma centena de indecisões,
Antes do chá com torradas.
(…)

E seu olhar devorou aqueles versos como alguém que tem sede e recebe um enorme copo com água depois de uma jornada exaustiva diante de um sol muito quente.

E o desenho que existiu a partir daquele rosto fez valer a pena o espiar. A satisfação percorria toda a pele de Rayssa que se acomodou em sua cadeira, devolvendo as suas orelhas os fones que seguiam “berrando” músicas, enquanto seus olhos se saboreavam com palavras e mais palavras.

Naquele momento, sua pele parecia exibir o elixir de um dia perfeito após uma grande conquista… Ela parecia saber que se não tivesse dado o primeiro passo, as duas seguiriam sendo duas estranhas percorrendo caminhos sempre muito próximos, mas nunca perto o bastante…

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>>> continua…

Próximo capítulo 13/12/2010