Por Lunna Guedes

epifanias

Anoiteceu pouco depois das três e finalmente todas as donas daquela cidade voltaram para suas casas, insatisfeitas, já que Maria nada tinha a dizer sobre aquela menina que vestia um olhar de manhãs ensolaradas, mas tudo que eles sabiam é que há tempos não havia tempestades nos meses de maio naquela cidade e bastou sua chegada para as nuvens negras desfilarem por um céu que até então exibia exuberantes raios de sol cuidadosamente pincelados na imensidão azul…

Maria, de fato, não sabia absolutamente nada sobre aquela jovem de sorriso fácil, mas isso não a incomodava porque pela primeira vez estava vendo sua filha em contato com alguém. Era como se depois de todos aqueles anos, finalmente ela estava dando os primeiros passos, dizendo as primeiras palavras, ensaiando os primeiros gestos. Era quase igual às outras, só tinha mesmo um pouco de atraso…

imageAs duas chegaram das ruas em meio a sorrisos molhados. Seus corpos gotejavam a chuva lá de fora bem no meio da sala de Maria que ainda exibia retalhos pelo sofá, agulhas e linhas na mesa de centro e a velha máquina de costura, tão cansada quanto sua dona. Ela observou em silêncio aquelas duas figuras destemidas e em seu canto de mundo sentiu-se sozinha, era como se aquela mulher repentinamente percebesse que não havia rastro de seus passos pelo chão. Sua vida era uma incógnita e não havia nada a sua volta para chamar de seu. Os olhos dela quase a traíram, mas não havia ninguém para perceber tal desventura. Afinal, ela nunca foi uma mulher para se notar, nem mesmo no auge de sua beleza quando suas tranças eram bem feitas e sua pele morena não exibia rugas como agora.

Seu pensamento fugiu de encontro às caixas onde a vida de seu finado marido coube de forma natural e chegou à conclusão de que se fizesse a mala, não gastaria tempo, nem movimentos. Seria bem menos que meia dúzia de caixas.

O jantar daquela noite foi feito por Rayssa que fez questão de ir buscar ingredientes na venda depois do temporal ter deixado a cidade e ao lado da amiga e seus múltiplos sorrisos, preparou uma boa pasta que agradou a todos, até mesmo o jovem rapaz que precisou sair apressado e quase leva alguns fios de macarrão pendurado na boca.

_ Não estava boa a massa Maria?

_ Estava ótima. – e de fato estava muito agradável, mas o apetite já não era o mesmo, nem mesmo para as coisas novas. Estava habituada ao seu arroz com feijão e aqueles filetes de frango. Às vezes comia salada ou um tomate picado com sal. Gostava mesmo era de tomar sorvete, mas isso tinha anos que ela não fazia. Outro desejo secreto era um peru de natal, assado e dourado igual aqueles das propagandas da televisão, mas o dinheiro nunca dava… E ela seguia com seus pequenos sonhos e arrastava seu corpo até a cama onde sua vida fazia uma pausa para reiniciar horas depois com o sol iluminando seu quarto que sempre ficava com a janela da rua aberta como forma de despertador… Lentamente ela se levantava, lavava o rosto, se olhava no espelho e às vezes achava graça. Mas naquela manhã, ela estava com as idéias atrapalhadas. Vestiu sua roupa de domingo e fez o mesmo de sempre, marchou até a igreja para se encontrar com aquele Deus que era uma espécie de sonho também. Ela cantava, rezava e voltava pra casa e isso era tudo. Não era para ser importante, fazer sentido. Era apenas para acontecer… Como era para acontecer todos aqueles comentários insensatos sobre Alexandra e sua amiga que ela ouviu pelo caminho e tentou ignorar. “Soube que as duas nadaram nuas lá na represa do Doca” – disse uma. “Eu sabia que ela tinha algo de sujo. Ainda bem que o pai dela não está vivo para ter esse desgosto” – disse outra. “E a pobre da mãe aceita tudo isso dentro de sua própria casa. Que pecado meu Deus”…

Maria apressou o passo para se libertar daquelas palavras que ela parecia engolir todas num gole só. Chegou em casa com muitos tormentos gritando em sua mente e encontrou as duas ali, sentadas na mesa da cozinha, tão próximas, com os olhares atentos ao nada. A xícara nas mãos delas pareciam formas de carícias e quantos sorrisos naqueles lábios que poderiam se tocar a qualquer momento. Tudo sombra precipitada por aquelas palavras. Ela não queria acreditar em tantas diferenças, por isso, ficou ali para ouvir o que diziam.

_ E o que vamos fazer hoje?
_ O que quer fazer?
_ Algo inédito. Mas antes eu tenho uma surpresa pra você. Só que vai ter que prometer aceitar sem reclamar…
_ Como assim?
_ Não sai daqui que eu vou buscar lá no carro…

E como quem vai num passo e volta no outro… Rayssa voltou trazendo uma caixa que foi aberta em frações de segundos.

_ Nossa. Eu não posso…
_ Lembra-se do que eu acabei de dizer? É um presente meu pra você. Não vai poder escrever num caderno para o resto da vida…
_ É um presente muito caro. Eu não posso aceitar.
_ Não sabia que deveria ver o preço antes de comprar um presente para alguém. Não gostou?
_ Claro que sim, é um sonho ter um computador desse, mas é que…
_ É seu e ponto final: eu espero que você escreva coisas incríveis nele e quem sabe um dia meus olhos consigam vislumbrar o que o seu olhar vêem e seus dedos escrevem… Eu tenho essa espécie de curiosidade quanto a você: sempre te vejo escrevendo e não faço a menor idéia do que seja…
_ Mas isso também acontece comigo. Eu também não sei o que você escreve…
_ É completamente diferente: eu já te disse o que eu escrevo: histórias. Eu sou uma escritora. Lembra-se disso?
_ Mas eu não sou uma escritora. Eu só escrevo bobagens: coisas humanas, cotidianas. Eu escrevo o que eu sinto sobre os dias, as pessoas, as horas, os momentos. Só isso…
_ Eu tive uma idéia. Me mostra como é que você vê esse momento? Faz de conta que está lá em seu canto secreto, escrevendo em suas folhas em branco, criando formas…
_ Agora? Aqui? Não… Eu não consigo. Sei lá, não sinto vontade alguma de fazer isso…
_ Vamos fazer de conta, está bem?

Alexandra respirou fundo em meio as suas incertezas e decidiu aceitar. Tentou se imaginar em sua cama, ao som daquela velha canção que pra ela representava movimentos aleatórios e de olhos fechados em silêncio começou a buscar por aquele cenário só seu, sempre de frente para sua janela que era uma espécie de porto seguro.

image“hoje eu finalmente entendi Fernando Pessoa e consegui viver sem corpo, sem alma, sem coisa alguma que pese sobre minha existência. Finalmente flutuei por cima de todos os sentimentos e estive lá, de frente para a represa, alheia a quem vem e a quem vai – a quem julga e a quem condena. Por um instante eu fui um deles, mas fui salva por uma aventureira que parece não viver para partir, chegar ou iludir. Tão pouco vive para marginalizar o tempo e seus malditos ponteiros. Ela vive apenas para flutuar até o horizonte, fazer uma volta inteira quando chegar lá e descobrir alento numa nuvem que passa e a acolhe”.

Depois daquela meia dúzia de palavras houve um silêncio natural entre elas que foi quebrado quando os olhares de ambas se encontraram repentinamente. O que existiu a seguir foi uma sonora gargalhada que encobriu o som do choro repentino que abraçou o rosto de Maria que seguia ali em seu canto, mergulhada em sua solidão que tinha suas fendas, mas ninguém passava por elas…

>>> continua…

Próximo capítulo dia 22/12