Por Lunna Guedes

epifanias

image Alexandra se incumbiu nos dias seguintes de uma difícil missão, encontrar um presente perfeito para aquela moça que a fazia sorrir. Ela tinha tudo. Sua vida parecia ser um conto de fadas. Desde que optara por fazer faculdade em Campinas, vivia num apartamento alugado, com móveis alugados e ilusões, todas alugadas. Seu sorriso parecia uma vitrine que podia ser constantemente observada com empolgação. Era praticamente impossível não sorrir com ela.

“ela desenha meninos e meninas em pedaços de papel. Parece uma menina de poucos anos a fazer rabiscos. Diz que são pessoas que ela encontra pelo caminho e no momento seguinte ela cospe pro lado “não gosto de gente”. Ela gosta de varandas e vive desenhando espaços com redes de amarelo apagado. Suas risadas eram constantemente quebradas por algum pensamento ou idéia inusitada e sua derme vive o prazer do verbo conjugado sempre no tempo presente. Ela não parece acreditar em pretéritos ou no futuro do subjuntivo. Tudo que sei de fato é que quando encaro seus olhos, eu simplesmente me perco e quando penso que não há salvação, me encontro como se nunca tivesse de fato me perdido”…

E foi num desses passeios em final de tarde que Alexandra se viu diante de um quiosque do Shopping Iguatemi que aquela altura estava cheio de pessoas que corriam atrás de presentes para suas mães. Ela nunca presenteou Maria, era estranho, mas nunca houve dinheiro e agora que mesmo sendo pouco, havia – ela não sabia o bastante sobre aquela mulher para poder pensar em algo. Então, seria prática e daria a ela uma dúzia e meia de moedas e ela iria ficar satisfeita por perceber que a renda do mês seria um pouco maior dessa vez e provavelmente ela levaria dias para decidir onde gastar a tal riqueza e acabaria por deixar dentro da gaveta, onde deixava tudo que sobrava ao longo dos meses. Deveria ter uma grande soma por lá, já que ela não gastava com absolutamente nada. Maria vivia para economizar; só não se sabia pra que… Mas ela dizia com a voz séria “nunca se sabe o amanhã”.

Alexandra saiu do shopping com um embrulho de cor vibrante nas mãos e um sorriso largo no rosto. Contou as horas e os minutos até o dia seguinte e imaginou várias vezes qual seria a reação de Rayssa que recebeu o tal embrulho em mãos e demorou-se a abri-lo propositalmente pois havia percebido a ansiedade nos atos de sua amiga. Era uma caixa de lápis de cor, com todas as cores.

_ Agora já posso pintar os seus olhos nos desenhos que faço. Eu sempre fico em dúvida quando pinto a cor dos seus olhos. Sempre os faço esverdeados, mas sei que são castanhos escuros.

image E o sorriso das duas se espalhava pela atmosfera. Elas vivam de mãos dadas para cima e para baixo. As gargalhadas acerca de seus passos ressoavam em meio a multidão da faculdade e ecoava pelas ruas da pequena Teodoro Sampaio por onde passeavam sobre rodas. O quarto de Alexandra ficava pequeno para tantos diálogos e a mesa da cozinha parecia uma extensão de sentimentalidades “que tanto elas têm pra conversar?” se indagava Maria constantemente, que aos poucos foi cedendo aos rumores da paisagem “eu sempre soube que essa filha da Maria era esquisita, mas assim já é demais” – “e o pior é que isso pode ser contagioso. Deus me livre desse pecado” – “isso não é pecado não? Deus não gosta dessas coisas. A gente precisa falar com o padre. Me dá arrepios só de imaginar essas duas se beijando por aí” – “eu fiquei sabendo que as duas estavam nadando nuas lá na Represa do Doca e se tocando”… Os dizeres daquela gente aumentavam dia após dia e o padre que rezava a cartilha da cidade resolveu visitar Maria bem antes do inicio das novenas, afinal, ela fazia parte de seu rebanho e muito embora sua filha não freqüentasse a igreja, ele tinha esperanças de que em algum momento ela recobraria sua consciência católica, coisa que ela nunca chegou de fato a ter. Só ia a missa quando menina e porque era levada pela mãe que conduziu seus primeiros passos, mas tão logo aprendeu a andar sozinha, nunca mais entrou naquele templo cujo som do sino inundava a cidade como se fosse um Deus zangado com sua gente. Não importava onde se estava, era possível ouvir seus badalos…

A conversa com o padre fez Maria visitar o quarto de sua filha naquela noite. Ela estava sentada na cama, tinha olhar de janelas e movimentos de ruas. O computador era a única luz naquele lugar e ela se quer notou a presença daquela mulher que continuava sem saber como falar com a filha, por isso seria breve.

_ Alexandra.

O olhar da menina encontrou a mãe que estava parada na porta entreaberta, seu corpo franzino estava quase prensado contra o batente e sua boca parecia engolir o pouco de saliva que havia. Ela foi direto ao assunto.

_ Eu não quero mais aquela sua amiga aqui. Boa noite…

imageE foi tudo que disse e foi o bastante para criar uma tempestade na mente de sua filha que ficou sem saber como iria dizer isso a Rayssa. O sono que já era pouco, perdeu-se de vez. Ela deu passos pelo quarto, pela casa, pela praça e pelas ruas. Sentou-se na calçada e ficou lá feito cão vadio a espiar as estrelas que eram muitas e viu quando finalmente o dia começou a pintar-se de novas cores… Choveu nos olhos da menina e sua dor podia ser sentida a milhas de distância. Ela não queria ir para a faculdade. Queria ficar ali, colecionando suas sentimentalidades junto ao meio fio. Seu ódio por aquela gente e aquela cidade duplicou-se em frações de segundos, por isso era preciso sair dali urgentemente…

As duas se encontraram na biblioteca no começo da tarde. Havia um estranho silencio entre elas. Alexandra nutria temor “como se diz algo assim a alguém? Como eu digo isso a ela? – seu pensamento ganhava forma de nuvens carregadas, com raios, trovões e relâmpagos. Ela não disse uma só palavra. Ficou ali em seu canto de mundo com seu silêncio e vez ou outra um olhar alcançava aquela criatura que de repente se abriu naquele sorriso agradável.

_ Hoje eu não posso te levar até em casa. Tenho um compromisso. Espero que não se importe. Mas eu te deixo na rodoviária. Está bem?

E quando chegaram lá, Rayssa tirou de sua mochila um combinado de folhas encadernadas que trazia na carta palavras de jornal recortado que diziam “o clube dos imortais”

_ Isso é pra você. Espero que goste, mas vai ter que me prometer ser absolutamente sincera depois que ler.
_ É uma história escrita por você? Não acredito. É claro que eu prometo. Seria absolutamente crítica. Pode esperar…
_ Que bom te ver sorrir de novo. Já estava ficando preocupada. Mas agora eu preciso ir. Ah! E isso aqui é pra sua mãe. É pesado…
_ O que é isso?
_ Uma surpresa que eu espero que ela goste…
_ Não deveria.
_ Alex, você não se acostumou comigo ainda?

E o sorriso de Alexandra era a resposta necessária e quando ela estava quase subindo a rampa de acesso a rodoviária, ela voltou correndo e gritou por Rayssa que estava se preparando para ir embora. Num movimento rápido, ela tirou um caderno de dentro de sua mochila e o entregou a amiga. Era um dos muitos cadernos de capa preta onde a menina escrevia suas sentimentalidades.

_ Ninguém além de mim conhece as palavras que estão aí nessas folhas. Esse foi o meu primeiro caderno. Era da minha mãe, ela fazia anotações de medidas, tecidos… Coisas desse tipo. Eu pedi e ela me deu; foi o único presente que eu ganhei dela em toda a minha vida. Acho que eu nunca disse a ela o quanto significou pra mim… Mas se eu dissesse, ela não entenderia. Quero que fique com ele.
_ Tem certeza?
_ É seu…

Rayssa desceu do carro e foi de encontro a amiga a quem entregou um abraço apertado que gerou sorrisos francos, olhares úmidos e saudades amenas. Tudo ao redor delas se movimentava de forma aleatória. Era preciso ir: diferentes caminhos ensaiavam chamados apressados; por isso permaneceram juntas até que os dedos ficaram apenas com os espaços vazios cheios de ar e completamente ausentes de outra coisa que não a imagem uma da outra…

>>> Continua….

Próximo Capítulo 27/12/2010