Por Lunna Guedes

epifanias

image Naquele final de tarde continuava chovendo, uma fina névoa abraçava a cidade desde a Catedral da Sé até o Morumbi onde viviam os pais de Rayssa. As ruas estavam tomadas por carros, pessoas e movimentos desordenados. Era uma aventura cruzar a cidade aquela altura, em meio a chuva… As pessoas queriam voltar para casa, mesmo sabendo que qualquer movimento era demasiadamente complicado. Buzinas irritantes se multiplicavam pelas ruas e alamedas. Prédios suntuosos surgiam do nada e ficavam para trás conforme as ruas iam sendo ultrapassadas. Um contraste adorável entre velho e novo se exibia por ali e o cheiro de elementos urbanos alcançava as narinas de Alexandra que estava encantada com absolutamente tudo que via. Até mesmo as luzes e os enfeites de natal que tomavam conta da cidade pareciam perfeitos aos seus olhos que nunca em toda a sua vida haviam apreciado aquela época do ano.

O apartamento de Rayssa ficava perto da Praça da República, era um desses prédios antigos, cheios de detalhes na fachada que havia sido reformada recentemente. Logo na entrada havia um daqueles móveis colônias que parecia tão velho quanto o prédio que tinha um tapete vermelho aveludado que conduzia o morador até o elevador que tinha um daqueles ponteiros de relógio indicando o andar que eram doze no total. Havia prédios em São Paulo bem mais altos que aquele, mas nem todos eram tão charmosos.

Quando a porta do elevador se abriu no último andar, uma senhora que aguardava com seu cachorrinho sorriu pouco antes de reclamar de um vazamento “esses prédios são uma droga. Sempre dão problema. Não vejo a hora de me mudar para um desses prédios modernos onde tudo funciona” – aquela era uma marca registrada da cidade, de acordo com Rayssa “todo mundo nessa cidade reclama de alguma coisa, como se a cidade de São Paulo fosse uma vilã e seus os habitantes as pobres vítimas”.

Alexandra deu de ombros para tudo aquilo. Só tinha uma coisa que de fato importava: ela estava em São Paulo e a vista da sacada daquele prédio a deixou estonteada. Aquele era um mundo de verdade e todas aquelas luzes acesas representavam janelas e lá pensamentos ganhavam formas e vidas eram totalmente possíveis.

alexandra O apartamento de Rayssa era um lugar comum, um corredor com uma porta no meio a esquerda que conduzia a cozinha, pequena, mais aparentemente agradável. Se seguisse em frente, chegaria a sala de jantar e a sala de visitas, todas interligadas, mais adiante havia um nicho com uma bela sacada de onde se podia avistar a cidade ou parte dela. A vista era perfeita, um belo banho de sensualidade e àquela hora luzes começavam a pipocar em meio ao devaneio da escuridão. Os quartos ficavam num outro andar, onde se podia chegar através de uma escada com oito ou nove degraus. O lugar parecia estar todo desmontado, sem móveis ou qualquer outro objeto. Mas tinha uma razão de estar assim, Rayssa estava aguardando a visita daquela mulher que não era nada além de uma pesquisa pessoal para uma futura história que ainda ganhava forma em sua mente. E enquanto Rayssa dava voltas por aquele lugar, repetindo frases para ouvir sua própria voz em forma de eco, como criança que gosta de labirintos, Alexandra fugiu para seu lugar favorito ali naquele lugar: a varanda.

_ Eu sei o que está fazendo…
_ Como assim? – indagou Alexandra depois de despertar abruptamente de suas distrações.
_ Está descrevendo a cidade que até então não conseguia se quer imaginar. Meu pai comprou esse apartamento por causa da vista. Ele estava vendo vários, mas quando viu essa paisagem, ele disse “é disso aqui que ela precisa”.
_ Seu pai é uma pessoa incrível. Ele e sua mãe nem parecem de verdade. Quer dizer: parecem pais de verdade. Dá pra entender porque você é assim tão incrível.
_ Pode parando com isso.

Alexandra abriu um enorme sorriso ao perceber aquelas lágrimas rasteiras nos olhos de sua amiga a quem envolveu num abraço, algo que ela aprendeu a fazer ao longo de todos aqueles anos vividos na companhia daquela criatura que era indócil para os outros, mas não pra ela.

As duas voltaram para casa em silêncio, havia apenas alguns movimentos realizados no ritmo da música que seguia se repetindo de acordo com a vontade das duas que precisavam de uma trilha sonora para enfatizar a perfeição daquele momento. Os olhos de Alexandra continuavam filtrando imagens ao longo de todo o percurso, como se precisasse saborear, decorar, aprender aquele mistério urbano que aos poucos se deixava desvendava por ela.

“hoje eu consegui entender Eliot e alguns de seus versos. Não consigo evitar olhar pela janela. Se antes ela se limitava a um horizonte parnasiano, hoje ela é toda contemporânea. Seus sons e movimentos são tantos que eu nem sempre sei pra qual direção olhar. Quero olhar tudo. Saborear cada janela que se acende quando a noite acontece. Quero vislumbrar ruas e carros e vê-los desaparecendo um a um. Quero andar naquele ônibus que para no meio do caminho apenas para engatar seus fios. Quero ir para dentro de São Paulo, fugindo de tuas vias e inaugurando tuas veias num subterrâneo que se movimento através de tua gente. Quero sentar nas praças e acompanhar os passos alheios. Quero tudo. Quero saber-te São Paulo”.

Esse era o post escrito naquela noite que foi ao ar no dia seguinte. Fazia alguns meses que ela escrevia regulamente naquela página de internet que de tão despretensiosa que era que Alexandra se assustava sempre que encontrava um comentário deixado por lá por um estranho que se identificava com apelidos e às vezes com o próprio nome. Para um país onde a crítica literária era algo pouco comum, ela parecia uma voz no meio da multidão se fazendo ouvir. Ela escrevia criticas sobre livros, exposições, eventos dos quais participava e não fazia questão alguma de esconder seu sentir com relação às coisas que presenciava e tal sinceridade acabou gerando desafetos: o primeiro deles foi uma jovem poeta de Porto Alegre que não se conformou quando Alexandra disse:

“Sua escrita carece de sinônimos, substantivos e verbos vários. Os poemas foram mal escolhidos, na certa ela tinha coisa melhor. Optar por uma gráfica de fundo de quintal não foi a melhor opção. Seria melhor manter tudo guardado na gaveta e evitar que outros olhos descobrissem seu conteúdo limitado. Na certa a jovem Luana Raposo nem gosta de ler, mas se diz leitora de Neruda e tantos outros mais em sua biografia. Seria um espanto pra mim saber que de fato ela conseguiu ir além da segunda folha do livro desses senhores. E ainda há quem diga que “poesia não vende”. Pelo amor dos Deuses, poesia vende sim, mas não a poesia desses senhores e senhoras que rima amor com dor”.

A crítica rendeu respostas desagradáveis por parte da jovem poeta que considerou a postura de Alexandra ofensiva, além de invejosa, afinal, até aquele momento, todas as críticas ao seu livro tinham exaltado o seu talento para a escrita. Mas foi assim que o blog “caminhos da metrópole” tornou-se conhecido e popular. Mais de cem comentários em só dia; dezenas de e-mails com textos e poesias para apreciação. Tudo isso numa espécie de susto que quase levou Alexandra a “fechar as portas” – mas Rayssa acabou convencendo-a do contrário. “você não pode se silenciar por causa de uma pessoa que se acostumou a ouvir meia dúzia de elogios rasgados. A diferença entre você e o que estão lá fora é que você diz o que pensa e o que sente, sem falsos argumentos ou se vendendo apenas para agradar. Esses dizeres é exatamente o que você é e se não agrada, não é você quem tem que sair de cena”.

image E assim começava a trajetória daquele blog que era um dos primeiros no cenário brasileiro, afinal, a internet ainda estava engatinhando e muitos juravam que era uma moda passageira que dentre em breve seria esquecida. Mas enquanto não era deixada de lado, a internet passou a ser para Alexandra o barulho de seu silêncio. Os convites chegavam diariamente, na mesma velocidade que a correspondência em sua casa com livros, artigos e propostas de editoras que ansiavam pelas suas palavras com relação ao produto a ser oferecido por elas.

“Lugar comum se sobressai em meio a qualquer livro que possa ter um espaço na prateleira de uma livraria. É um desses livros onde os personagens não se limitam as páginas. Eles saltam das ilusões do autor para habitar a nossa realidade comum. A evolução do personagem exerce um delicioso poder de atração e a intensidade lírica faz lembrar Jane Austen em seu delicioso Orgulho e Preconceito, lido por mim há pouco tempo. Muito bem estruturado por Arthur Lima, a história transita com habilidade entre o passado e o presente, numa trama ao mesmo tempo sensualmente descrita e absurdamente sinistra. É a estréia de um grande talento da literatura brasileira”…

E foi através de seu blog que Alexandra recebeu um curioso convite de uma artista plástica no terceiro dia de sua estada em São Paulo.

“Querida Alexandra Mendes, gostaria de tê-la como convidada na abertura de minha exposição no próximo dia 20 de dezembro de 2002. Soube da sua presença em São Paulo através de seu blog “caminhos da metrópole” e tal novidade causou ânimo em minhas veias, já que posso ter um desejo realizado: tê-la aqui para que seu olhar se transforme em palavras e eu possa saber se minha arte de fato convence ou vale a pena. Aguardo sua presença com o mesmo prazer com que aguardo a primavera pois suas palavras são como flores para os meus olhos”. Anne Letrech.

O convite causou surpresa, mas ao mesmo tempo curiosidade como se naquele instante Alexandra fosse atraída para uma caminhada ao longo das ruas da cidade que a levariam de encontro ao desconhecido que de certa forma era como uma brisa suave ensaiando ser uma ventania…

>>>continua…

Próximo capítulo 03/01/2011

Feliz 2011!!!!