Hoje, navegando pelas Nossas Marés, a querida Glória Diogenes

Para além do tempo

Existem continentes vertidos sob meus pés. Eu nunca fui mulher de viver uma só vida. Esse lugar em que agora moro abriga um tanto de outros. Fico aquietada e escuto vozes de fantasmas cruzando portas. Uma fina camada de areia separa porões e sótãos que guardam objetos apartados de mim. Habito um lugar que não alcanço mais. Arqueólogos de um futuro imperfeito encontrarão relíquias de um caso pretérito de amor: cachos enlaçados amarrados em laço de fita, tua voz rouca entoando canção de reconciliação e folhas secas de um dia de primavera. As dobras do desejo criam camadas paralelas de tempo. Ficam vedadas as passagens para outros lados de uma mesma história.

Nesse presente, movo-me sob domínios férteis e gentis. Um amor me tomou as mãos, desvendou o segredo entre lábios e me fez alcançar outra dobra de chão. Preparei um vestido branco de algodão e vou trançar no cabelo flores de jasmim. Até o coreto da praça se enfeitará de música e fanfarra. Quero uma canção capaz de despertar cidades adormecidas. Vou ser a primeira a levantar a barra do vestido e rodopiar. Eu pedi para que minhas amigas e amigos falem bem de mim e de você ao santo protetor de amores nascentes. Ele é Rafael, arcanjo que brinca comigo de vale tudo. Eu digo o nome do desejo e ele me traz a glória. Ganhei um anel com pedrinhas que brilham alegria e confirmam a mulher escolhida.

As vozes de ontem ecoarão em campos vastos de infinitivos verbos futuro: criarei, fecundarei, morrerei banhada de vida. Até que o corpo mova-se em partículas de luz e atravesse barreiras do tempo. O amor dará passagem em ritos de fertilidade. Eu serei terra plantada de colheita farta. Filhos de todos os continentes me prosseguirão. Um vento veloz e aves de arribação espalharão sementes. Estará escrito: ela atravessou cancelas.

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Glória Diogenes  é uma escrivinhadora e dona de palavras verdadeiras e líricas. Sentimental, sensível e observadora de versos desde o sol da manhã até o anoitecer. Compõe palavras em fotografias e revela fotos em palavras digitalizadas. É antropóloga. Vivendo da arte de tecer direitos. Uma mulher que de vez em quando se esconde detrás da porta.

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Blog: Linhas ao vento

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