Por Lunna Guedes

epifanias

O tempo passando devagar, pesado. Os ponteiros pareciam atrasados, perambulava pelo círculo mágico da vida em primeira marcha. As ruas seguiam exibindo ausências; o mundo inteiro parecia de férias e era preciso esperar pelo carnaval. Antes disso, tudo tinha um ritmo morno. Apenas acontecimentos leves.

mesa-jantar-brindeFoi em uma noite de quinta-feira que elas se mudaram. O jantar pela primeira vez foi preparado naquela cozinha por todas as mãos convidadas. Alexandra lavava e cortava tudo que lhe pediam. Rayssa servia as taças que se esvaziavam na mesma velocidade em que surgiam sorrisos nos lábios daquela família que parecia sempre ter um motivo para festejar. Reyna era o Dj da festa. Músicas alegres, conhecidas por quase todos, cantadas em alto e bom tom… Era preciso celebrar; sentar-se a mesa em meio a diálogos engraçados que não pretendiam nada além de divertir e fazer daquele momento algo muito especial para ser lembrado amanhã. “É assim que se desenha a eternidade” diria Rayssa e ela estava certa porque muitos dias depois aquela cozinha ainda guardava aquela sensação adocicada que tantos sorrisos espaçados haviam deixados propositalmente por ali. Era impossível tomar uma simples xícara de café e não ouvir Mari contando uma história vivida ao lado de Bruno durante uma das muitas viagens feitas por ele “foi na lua de mel número sete? Ou foi a de número oito?”. E o sorriso nos lábios de Alexandra se multiplicava enquanto sua pele se deixava envolver por aquele aconchego gostoso que a fazia sentir-se em casa e era a primeira vez em sua vida que ela se sentia assim porque aquela velha casa onde havia crescido não era, era a casa de sua mãe e ela nem sempre se sentia confortável por lá; por isso mesmo se limitava ao seu quarto. Mas ali naquele apartamento, ela lia livros na sala, na varanda, na mesa da cozinha; assistia televisão no quarto de Rayssa e as vezes dormiam juntas e só se davam conta disso quando acordavam pela manhã com a luz do dia “gritando” em seus olhos e era expulsa de lá a travesseiradas que geravam risadas gostosas e incontidas.

Tudo passando bem devagar, na morosidade natural de uma cidade que não para, mas muda de ritmo nos primeiros meses do ano. Enquanto isso, Alexandra se perdia pelas ruas da metrópole e se encontrava com ajuda de mapas que seguiam no bolso até que seu passo se acostumasse com todos aqueles endereços que se multiplicavam a cada dia… Mas não demorou para que ela tivesse seu próprio mapa listando os seus lugares favoritos na Paulicéia que viu surgir uma intimidade natural na pele daquela menina aventureira que gostava de almoçar no Sesc Carmo; tomar sorvete no Shopping Vila Lobos, caminhar pelo Parque Trianon, ler na Mário de Andrade e ouvir músicas na Praça Dom José Gaspar. Ir ao Municipal com Rayssa e sua mãe e almoçar aos domingos na Famiglia Mancini. Sentar-se as quartas-feiras no Boulevard São Bento e ver aquela multidão levando as compras feitas na 25 de março.

A volta para casa era lenta, ela sempre passava pelo meio da Praça da República observando as arquiteturas que a circundavam. Alguns prédios antigos chamavam sua atenção e era impossível pra ela não pensar se estariam por lá amanhã, afinal, São Paulo era uma cidade que parecia não se importar com o tempo. O moderno transitava ali ao lado do velho, mas parecia dizer a ele “vá dormir seu sono justo e deixe-me ditar o ritmo dessa cidade”.

imageNaquele final de tarde, Alexandra chegou em casa e foi surpreendida com uma carta, entregue a ela pelo porteiro do prédio que abriu a porta dizendo “tem correspondência para a menina” – era exatamente assim que aquele homem chamava todas as jovens que moravam no prédio. A maioria dos moradores tinham mais de cinqüenta anos e pareciam ter nascido junto com o prédio. A carta era de Maria. O envelope branco exibia uma letra em tom azul claro, bem desenhada. Sua mãe sempre teve uma caligrafia bonita. De normalista; curso feito por ela sem interesse algum. Imposição, dizia ela em tom de desagrado. Nunca utilizou para nada. Aprendeu a costurar com a mãe. A avó que Alexandra não chegou a conhecer. E sua vida se tornou um verdadeiro emaranhado de apontamentos. A tal carta se resumia a uma pequena folha de papel e não trazia muito mais que três linhas. Mas só o fato de haver uma carta já era algo excepcional, já que aquela mulher nunca antes havia escrito uma só carta em toda a sua vida.

O envelope, ainda fechado. Foi deixado ali sobre a mesa, ao lado de dúzias de livros enfileirados e que seguiam sendo lidos, um após o outro. Alguns faziam parte de seu trabalho. Editoras que pediam resenhas. Outros estavam ali apenas pelo prazer de serem descobertos e alguns (poucos) indesejáveis. Enganos cometidos no compasso daquela existência breve e cheia de parênteses.

Não havia tempo para correr o olhar sobre aquela folha naquele momento. Ela precisava se libertar de todas as cores que ainda habitavam seu olhar. Ela tinha visitado a exposição do artista plástico Rafael Benitez que se dizia contemporâneo e seus talentos estavam enumerados no folder que havia trazido consigo.  Estava tudo fresco, até mesmo o cheiro de tinta que urdia em suas narinas. O artista fazia uso de uma técnica própria onde uma verdadeira confusão de tintas se manifestava na clara tentativa de surpreender. Em uma das telas, a maior de todas, intitulada “folia” pelo artista; uma mulher dançava samba. Ao menos era isso o que dizia o tal folder, mas Alexandra ficou quase vinte minutos procurando por curvas que não pareciam estar presentes na tela. No total, doze trabalhos estavam expostos naquele cenário multifacetado.

“eu não vi nada de novo e chamar de arte contemporânea seria o mesmo que mergulhar no comum. Os traços ainda pedem mais atenção e eu me demorei a compreender todas aquelas figuras reunidas em cada uma daquelas telas. Quantas cores. Quase vislumbrei uma aquarela inteira com pincéis absorvendo tintas enquanto a tela era maltratada. A nova geração de artistas parece acreditar que basta jogar tinta na tela para que o contemporâneo se expresse”..

flores O ruído sonoro da campainha interrompeu os movimentos frenéticos de seus dedos. Havia alguém na porta. Mas o desejo de não ser interrompida era maior, por isso ela respirou fundo, admirou a tela branca do Word na clara tentativa de manter seu foco; mas foi mesmo impossível. O som aguçado da campainha ressoou pela segunda vez por toda a casa. De forma abrupta, Alexandra arrastou-se até a porta que foi aberta de supetão. Ela parecia disposta a cuspir todo o seu descontentamento pra cima do pobre mortal que ousava interrompê-la naquele momento e de fato teria feito isso, não fosse Anne Letrech que tinha em mãos uma dúzia de margaridas azuis e uma caixa de chá, além de trazer nos lábios aquele sorriso desorientador.

_ Boa tarde Alexandra…

 

>>> continua…

Próximo capítulo 19/01/2011