Epifanias – cap. 20

Por Lunna Guedes

O apartamento de Anne tinha diferentes tipos de sombras. Algumas eram coloridas graças a cor alaranjada das cortinas. Outras eram escuras graças ao tom escuro dos móveis. Alexandra imaginava algo mais colorido, menos sério e conservador. Mas gostou da paz daquele lugar que tinha uma fonte jorrando água o tempo todo. Pequenos cômodos, uma pequena varanda com mesinhas e uma janela de vidro para deixar o barulho do lado de fora. A paisagem não era bonita, só dava pra ver outros prédios e um pequeno jardim onde crianças “silenciosas” brincavam. Anne não gostava de crianças, nem de animais de estimação. Gostava de silêncio e Bach numa altura aceitável.

O jantar “improvisado” foi servido numa mesinha redonda que era iluminada por uma luminária baixa que parecia um sol iluminando o dia.

_ Gostou da surpresa?
_ Claro.
_ Eu não sou muito boa na cozinha. Então não pense que eu fiz essa salada.
_ Não se preocupe com isso. É a sua companhia que de fato importa.
_ É muito bom ouvir isso.

As taças se encontraram para o brinde em meio ao sorriso transparente daquelas duas “meninas” que estavam se descobrindo através das pequenas coisas. Passeios no parque no final da tarde. Visitas repentinas que não causavam surpresas. Olhares paralelos. Carinho na pele ainda tímida, mas visivelmente agradecida. beijos fortes com alguma coisa a mais que parecia ditar uma possível direção. Tudo muito bem desenhado no escuro de sentimentos que não estavam prontos. Alguns ainda nem sabiam de fato existir. Estavam ali, a bordo daqueles horizontes que precisavam de retoques como se fossem uma tela onde o artista se perde em delírios tantos.

O beijo uma vez mais envolveu os lábios de Alexandra que seguia se deixando guiar por aquela mulher que silenciava seus pensamentos. Não era preciso pensar, não quando estava ali ao alcance daqueles toques.

_ Sabe, eu estou com uma dúvida imensa.
_ O que foi?
_ Fiquei com a sensação de que a sua amiga não gostou de mim.
_ A Rayssa? – estranhou Alexandra com aquela afirmação que aos seus olhos pareceu absurda. _ Imagina Anne. A Rayssa não é do tipo de pessoa que se aproxima no primeiro contato. Ela gosta de distância. Se sente segura observando as pessoas em seu habitat natural…
_ É assim com você?
_ Claro que não, mas é diferente com a gente. Nós somos amigas. Temos uma intimidade natural. Mas levou anos pra ser assim.
_ Você fala nela o tempo todo. Fico com ciúmes. Ela te conhece tão bem. Sabe tanto de você e eu já percebi que você precisa contar tudo pra ela. A sua vida parece que gira ao redor daquela garota. Não acho isso saudável. Fico preocupada.

Alexandra afastou-se por um momento, afinal, não havia porque sentir ciúmes. Ela e Rayssa eram amigas e ela tinha certeza de que não havia outro sentimento entre elas. As vezes havia a sensação de que eram irmãs, algo que faltava na vida de ambas. Alexandra recolheu-se junto as suas lembranças e acabou sorrindo ao lembrar do barulho do livro sobre a mesa ocupada por ela na biblioteca da faculdade.

_ Eu sabia que não deveria ter dito nada disso. Me desculpe…
_ Não precisa se desculpar. Mas não tem motivo pra você sentir ciúmes. A Rayssa é a irmã que eu nunca tive. Nós nos entendemos sem precisar ficar justificando as coisas que pensamos e fazemos. É tudo natural pra nós duas. Só pra você ter uma idéia do que eu estou falando, a Rayssa leu sobre uma decoradora dos anos oitenta numa revista e foi atrás dela e acabou conseguindo que a mulher voltasse a trabalhar e decorasse aquele apartamento. Ela fez isso apenas pra observá-la. Foi assim que ela criou a Giulia Medeiros, a personagem da história que eu estou lendo…
_ Então ela usa as pessoas, como se fossem objetos que ela pudesse mover de um lado para o outro ao seu bel prazer…
_ Não é nada disso Anne. Você é uma artista, achei que entenderia.
_ Eu sou artista sim, mas eu não uso as pessoas. Isso é errado. Você não pode achar isso certo Alexandra. Pelo amor de deus. Eu começo a ficar preocupada com você o tempo todo ao lado dessa garota. Aquela moça precisa de ajuda e você precisa ficar longe dela. Ela pode te fazer algum mal. Sei lá…

Alexandra não conseguia acreditar no que estava ouvindo. Ela olhou para sala, o sofá, o tapete como quem busca uma saída daquela estranha situação. Respirou fundo e tentou não encarar Anne e aquela expressão de razão acima de tudo e de todos.

_ Tudo isso que você está dizendo é um absurdo. Você nem mesmo conhece a Rayssa para dizer algo assim. Ela não gosta de gente. Só isso. Ela se mantêm a distância e não tem nada de errado com isso…
_ Ela não gosta de gente? E você é o que honey? O bichinho de estimação dela?

Alexandra engoliu seco. Sentia raiva em cada mísero centímetro de seu corpo. Os olhos estavam prontos para lacrimejarem, mas ela engoliu o choro na mesma medida que tentou engolir a raiva. Correu os olhos em todas as direções. Girou em seu próprio eixo. Ela não queria dizer algo que pudesse causar arrependimento, então procurou por sua mochila para sair dali antes que explodisse. Ela não iria admitir aquelas palavras…

Estava pronta para defender a amiga, mas não estava para a primeira briga com Anne. Por isso apanhou a mochila, procurou pela porta e tentou sair. Desajeitada, dramática. Sustentando o silêncio até seu movimento ser contido por Anne que tentou impedir sua saída.

_ Me deixa ir, por favor…
_ E você quer que eu acredite que vocês duas são apenas amigas? Olha só a sua reação comigo por causa de meia dúzia de verdades…
_ Chega Anne. Você não conhece a Rayssa. Não faz idéia do ser humano maravilhoso que ela é. Então fique quieta. Porque desde que eu e você nos encontramos, ela nunca disse uma só palavra a seu respeito. Talvez você tenha razão em dizer que ela não gosta de você, mas ela nunca demonstrou isso. Ao contrário de você. Agora me dá licença…

Diante daquela reação, Anne percebeu que havia se precipitado e precisava voltar atrás para não perder Alexandra que estava ali, a um passo de sumir de sua vida e isso não poderia acontecer.

>>> continua…

Próximo capítulo 31/01/2011