Por Lunna Guedes

epifanias

image Duas semanas inteiras. Muitas flores e vários cartões. Inúmeros olhares vazios e uma só certeza: tudo voltaria ao normal quando Rayssa estivesse longe. No mais, era preciso ter paciência para com todos aqueles movimentos desordenados e inconvenientes.

Houve um tempo antes em que Anne acendia a luz pela manhã e saia para sua vida em busca de inspirações. Tudo a sua volta era uma promessa constante. Era preciso atenção a cada pequeno detalhe e no meio de toda aquela multidão, saltavam elementos que seriam usados por ela em sua arte. Mas agora tudo se voltava para uma só direção e era urgente preservar tudo aquilo para não se permitir extinguir.

Ela passava horas inteiras velando aquele sono morno, gentil que punha fim em todos aqueles movimentos cheios de precipitações. Coisa típica de uma menina que anda descalça, sem vícios, mas que nutria em sua derme certo medo de existir. Era preciso calma para não assustá-la. Os exageros geravam precipitações indesejáveis. Era preciso cuidado. A menina vestia fitas, gostava de sombras e desprezava os vestidos de algodão, com cores de primavera porque em seu avesso vivia um moleque astuto, que às vezes se impunha sobre a figura daquela mulher cheia de contornos alegres.

Uma coisa era certa e definitiva: Anne tinha seu próprio sonho de menina…

Alexandra não tinha horários. Às vezes acordava cedo, às vezes tarde, mas sempre em baixo do chuveiro. Vestia-se, sentava-se a mesa com um punhado de revistas, o computador, a xícara de leite quente e os rascunhos: pequenos papéis narrando caminhos, encontros e desencontros.

Um beijo carinhoso era entregue aos lábios de Anne que sempre queria mais. O sorriso da jovem, contudo, parecia dizer “basta, trago outro punhado mais tarde” e as ruas recebiam seus pés comumente acariciados com creme de amêndoas na noite anterior enquanto o sono sepultava-se naqueles belos olhos que não enxergavam muito mais do que Anne gostaria. Ela desejava que aquela janela só tivesse um único horizonte: ela…

Mas aqueles dias estavam sendo dedicados a uma nova paisagem. O convite para editar uma nova revista tinha sido aceito. Era tudo novo e a ansiedade já se fazia sentir naquelas linhas.

“Pensar é chato porque tem conseqüências. Você começa pensando acerca do hoje e quando se dá conta, está pensando sobre todos os amanhãs e depois. Tendo a achar que estamos todos desorientados e pior, seguindo numa mesma direção. Se um vento rajar mais forte, seremos todos carregados. Que desespero. A contagem regressiva já começou e eu preciso de gente que goste de escrever. Mas gostar não significa apenas gostar, entende? Então se há interesse, basta me dizer com poucas palavras “porque é que alguém começa a escrever?”

Rayssa achou graça daqueles dizeres e enquanto vivia seus últimos dias em solo paulistano, ajudava a amiga com a decoração daquele espaço quadrado que precisava ganhar ares da redação de uma revista que deveria ser moderna, atraente e convidativa.

O quinto andar de um dos prédios mais antigos da cidade seria parcialmente ocupado por ela e por todos que fossem selecionados para trabalhar com ela. O prazo não era dos melhores. Tudo deveria estar pronto em vinte dias e o primeiro exemplar deveria sair do forno quinze dias depois.

_ Eu estou tão perturbada com esse negócio de prazo. Acho que eu ando até sonhando com isso…
_ Você consegue. Até porque eu acho que o seu problema não é o prazo e sim a ansiedade de ver tudo pronto…
_ Você tem razão. Dá uma vontade de ver tudo isso funcionando e ver o primeiro exemplar aqui em minhas mãos. Isso tem cura?
_ Eu acho que não, ou melhor, tenho certeza que não. E lamento informar que a tendência natural é piorar daqui pra frente…
_ Você não está ajudando e está pra ajudar…
_ Sim senhora. Então vamos começar…

image Aquela sala, aos poucos foi se transformando. O vazio começou a ganhar cor, luz, desenhos, objetos, perspectivas e por fim um quadro na parede, meio torto (propositalmente) dizendo “entrelinhas”. Era o nome da revista que seria um suplemento semanal do jornal.

Anne que seguia alheia aquele projeto, não demonstrava satisfação para com aquele novo momento na vida de sua amada. Ela sabia que tudo aquilo era apenas mais um obstáculo entre ela e Alexandra que iria ter menos tempo para estar ao seu lado.

E de repente Alexandra estava saindo mais cedo e voltava cada vez mais tarde. O jantar esfriava na mesa. As taças seguiam vazias ao lado da cama. As xícaras já tinham outro lugar, mas a página pessoal de sua amada sempre recebia afagos. E com o passar dos dias, o olhar de Anne para aquele blog passou a nutrir certo rancor.

“Uma hora e meia no trânsito paulistano. Calor insano. Ao menos é possível ser feliz. Mas não conte isso por aí porque as pessoas precisam ser infelizes ou não poderiam distribuir queixas para o mundo dos outros. 

Enfim, falta-me tempo, sobram-me pensamentos. Alegrias se multiplicam e a contagem agora tem apenas um dígito. Tudo tão breve. Eu preciso correr, mas o trânsito segue numa linha imóvel e dá vontade de descer do táxi e ir caminhando até o fim…

É tudo tão longe nessa cidade (acabo de perceber isso). Perto mesmo é o cansaço nos olhos alheios. Nos outros carros há crianças se debatendo e mães sem paciência alguma tentando ser mulher, profissional, amante, menina. O que será que se perde ou se salva disso tudo? Acho que já tenho um tema para a primeira edição da revista. Nas entrelinhas: o que se salva disso tudo? Tem resposta? É melhor ter porque o dia está começando e eu não estou me movimentando”…

Quase duas horas mais tarde Alexandra chegava à revista que agora já tinha muitos braços e pernas. Primeira reunião. Muitas idéias. Tudo tão fresco como as manhãs de inverno onde o sol é apenas um convidado que parece estar sempre de saída.

Depois dos caminhos apresentados, os passos começam finalmente a existir. Os movimentos se multiplicam. É como receber a certeza de um filho a caminho.

_ Bom dia. Como está à casa nova? Pelo ânimo do pessoal, parece que está tudo muito bem por aqui…
_ Foi divertido; mas eu acabo de me lembrar que faltam poucos dias pra sua viagem. Dá pra parar o tempo? Eu  já estou sentindo saudades antecipadas. O que afinal você vai fazer na França que não pode fazer aqui?
_ Infelizmente pra você eu tenho uma resposta pra essa pergunta.
_ Seria espantoso se não tivesse resposta. Com certeza não seria você…
_ Eu preciso estar lá ou então não iria. Preciso descer uma ladeira, encontrar um par de olhos com os quais vou esbarrar. Vamos passar um pelo outro e por um breve instante vamos querer olhar para trás. Mas não vamos fazer isso. Vamos apenas sorrir e esperar pelo momento seguinte que vai acontecer como se fosse combinado. Estaremos sentados em diferentes mesas, numa mesma calçada: café com chocolate sobre a mesa, um livro e aquela música que parece sempre tocar pelas ruas de Paris. Tudo isso num único fim de tarde, minutos antes da chuva. Ele não vai se conter e então vai vir ocupar a cadeira vazia a minha frente que parece estar lá, caprichosamente, esperando por ele. Fará uma pergunta boba, conhecida e vai rir deliciosamente “de onde nos conhecemos?” e a resposta só virá dias depois e ele vai continuar rindo sempre que ouvir a resposta…
_ É um novo personagem?
_ Claro que sim, não é o que todos nós somos? Personagens?

Alexandra ficou em silêncio por alguns segundos. Espiou a vista de sua janela e por fim exibiu aquele sorriso aventureiro, típico de quando uma idéia saltava de sua mente para o mundo.

_ Tenho um convite a te fazer?
_ Então faça…
_ Eu quero que seja colunista da revista. Mas não quero artigos. Quero uma novela em capítulos. O que me diz?
_ Quantas palavras cabem dentro de um capítulo? – ponderou como se travasse um diálogo consigo mesma. Esquecendo-se momentaneamente da presença de sua amiga que não parou para pensar, pois sabia que aquela pergunta era para o vento e não para ela. _ Eu aceito. – respondeu de forma breve e decisiva. O sorriso em seus lábios parecia um sol a criar sombras pelo caminho.
_ Preciso de uma margem de cinco capítulos. Tem como você me apresentar algo já para essa primeira edição? Iria ser o máximo…
_ Eu vou pensar no seu caso…
_ Não seja uma menina má.
_ Não serei. Eu prometo… Eu já sei que história irei escrever. Só preciso pensar num título ou rótulo. Eu prefiro rótulo porque lembram garrafas de vinho…

Rayssa deu meia dúzia de passos pelo recinto e parou diante da janela. O horizonte urbano da paulicéia em plena tarde de inverno a deixou sorridente. Era respirou fundo como se ao fazê-lo, conseguisse sentir o mais delicioso perfuma da estação.

_ Já sei…
_ Já sabe o que?
_ O rótulo: será “epifanias”…
_ Mas o Caio Fernando Abreu já não escreveu sobre isso?
_ Não sobre o que eu vou escrever.
_ Que droga. Eu sinto que você vai me entregar um mísero capítulo por vez?
_ Um não. Dois. E vou deixar o final pronto. Mas só vou te mostrar no último segundo…
_ Não pode fazer isso.

E o sorriso de Rayssa se multiplicou naquela sala como resposta a visível desaprovação de Alexandra que dias depois estava no aeroporto para se despedir de sua família e ali mesmo, recebeu das mãos dela um envelope.

_ O que é isso?
_ O que você me pediu. Ou será possível que já tenha se esquecido?
_ Os capítulos?
_ Os cinco primeiros… Eu te envio o resto de Paris.

De repente, Alexandra se viu em meio a uma comichão. Queria largar Rayssa ali e sair em busca de um lugar onde pudesse se ausentar do mundo para se dedicar a leitura daqueles escritos. Mas se conteve. Se jogando nos braços de Rayssa para um abraço, não mais de despedida, e sim de agradecimento. Horas mais tarde, depois que o avião ter cruzado os ares rumo ao outro lado do oceano, Alexandra se encontrou com aquelas linhas que se explicava de imediato na primeira página.

Prólogo.
“há um lugar sem poemas, uma linha onde não se sabe coisa alguma sobre o horizonte. Damos voltas ao redor de um mundo que não vai adiante. É sempre o mesmo céu, o mesmo véu. Todos os homens são pequenas ilhas e todas as mulheres pequenas cidades. Há uma multidão inteira do lado de fora de uma simples janela, contando histórias onde nomes são sempre os mesmos e se confundem. Todo mundo sabe ou pensa saber. Todo mundo vive ou pensa viver. Mas há entre eles um olhar que mira um ângulo torto e a perspectiva é uma côncava que e impõe e isto não é poesia, mas arde, acende, apaga numa certa intensidade que parece esperar pelo que vem depois” – Por isso epifanias de Rayssa Mendelson…

Alexandra se sentiu nua. Viajou no tempo e espaço e depois de tanto tempo lembrou-se daquele lugar onde deu seus primeiros passos. A lembrança já não inspirava mais confiança: era turva, opaca e aos poucos começa a esmaecer como se fosse simplesmente desaparecer. Ela estava surpresa com aquelas primeiras palavras, afinal, aquela história ela conhecia muito bem… Mas seria curioso acompanhar o olhar de Rayssa sobre seu antigo mundo…

>>> continua em: 16/02/2011