Projeto 52 – Missivas

V.

Ontem procurei as tuas letras esquecidas no papel de carta amarelado pelo tempo que teu silêncio causou em mim. Profanei alguns versos escritos e reverenciei aquelas letras meio apagadas pela ausência das tuas falas. Olhei para céu a procura de algum resquício de memória dos detalhes que gostas só para compor qualquer verbete, mas encontrei um sol amarelado pela fumaça dos incêndios que acontece em algum lugar dessa cidade. Foi então que lembrei que gostávamos de conversar por horas a fio sobre essa mania insana das pessoas inventarem motivos para colocar fogo em tudo. Os desgastes e estragos são sempre maiores que a nossa vã filosofia é capaz de dialogar. Aqui a atmosfera encontra-se pesada, não sei se pela ascendência da poluição ou da incerteza das minhas letras que desenham uma missiva a ti.

Faz muito tempo desde que os meus olhos encontraram as tuas letras confusas e o meu sentir percebeu resquícios de algum perfume nos teus envelopes. As tuas cartas eram tão perfumadas, parecia até que as tuas letras tinham o aroma dos campos floridos. Percebia em suas páginas, talvez fosse imaginação, algumas gotas de chuva de verão. As notas desenhadas em tuas missivas eram aconchegantes a ponto de eu esquecer que tempo fazia lá fora.

Agora encontro-me aqui, presa em todas essas nuances pretéritas e à procura do que escrever a ti; até ensaio um verso ou outro, mas perco-me nas memórias das nossas caminhadas na areia, dos nossos passeios noturnos ou de quando nos perdíamos no parque, enquanto caminhávamos por aí sem olhar o relógio ou qualquer outro objeto que contava as horas. Parece que tenho sobrevivido de todas as lembranças acumuladas do tempo em que trocávamos pequenas cartas e bilhetes de bolso.

O tempo lá fora parece ter mudado alguma coisa, ou foi apenas uma nuvem que passou sob o sol! Não sei se chove ou se caem estrelas nessa estação que imita aquele outono solitário que ficou no passado. Ainda estou imersa no tempo que pulsa dentro de mim e de todas as confusões reclusas de minhas memórias. Sorvo um gole de café e percebo que a nossa música, ou a lembrança dela, toca no em algum lugar desta casa. As paredes mudas apenas observam os meus movimentos que ou olha pela janela, ou olha para esses papéis espalhados na mesa.

Eu juro que tentei escrever alguma coisa só para manter o nosso diálogo vivo. Folheei alguns livros, revisitei filmes e músicas antigas, mas o que eu tenho aqui nessas letras são descrições de momentos pretéritos ou do presente alucinado das letras que morreram no papel. Não sei se consegues ler as minhas entrelinhas, mas elas carregam histórias nossas, doces lembranças de quando éramos jovens e percorríamos as estradas sem parar no tempo.

Não sei se irá chover, mas entrego a ti missivas tempestivas de mim.

Ainda não sei se a chuva que ensaia no céu irá dissipar a fumaça desse sol amarelo, ou se a gota que vejo é apenas imaginação, ou um desejo que nasce da angústia de ver a terra queimar. A única certeza que tenho nesse dia cheio de fumaça e fuligem é que o meu pensamento está carregado de emoções antigas do tempo em que caminhávamos lentamente pela chuva. Nunca tivemos medo da água que desce do céu, ela está ali apenas para molhar o corpo e a alma.

Queria poder escrever mais alguns versos, porém as letras mergulham no papel e evaporam na envelhecida linha do grafite. Olhe para o céu quando ler a minha missiva, lá estará o poema que a nuvem deixou para nós.

Espero um gesto teu quando receber essas palavras.

Com carinho,

R.

Tema: Não sei se irá chover ou não
Organização: Lunna Guedes / @scenariumlivros

Este é o primeiro post do Projeto 52 missivas.