Desassossego
Enquanto as horas brincam comigo, enquanto as pessoas passam apressadas à minha frente eu sigo lendo Fernando Pessoa, ou melhor, Bernardo Soares. Infelizmente, ainda não consegui tempo para encontrar alguns amigos, nem estou com tempo de parar o tempo desse mundo adulto que corre a minha volta, mas, enquanto não consigo mexer em meus ponteiros, a cada estação eu leio páginas de um desassossego…
“Depois que os últimos calores do estio deixavam de ser duros no sol baço, começava o outono antes que viesse, numa leve tristeza, prolixamente indefinida, que parecia uma vontade de não sorrir do céu. Era um azul umas vezes mais claro, outras mais verde, da própria ausência de substância da cor alta; era uma espécie de esquecimento nas nuvens, púrpuras diferentes e esbatidas; era, não já um torpor, mas um tédio, em toda a solidão quieta por onde nuvens atravessam.
A entrada do verdadeiro outono era depois anunciada por um frio dentro do não-frio do ar, por um esbater-se das cores que ainda se não haviam esbatido, por qualquer coisa de penumbra e de afastamento no que havia sido o tom das paisagens e o aspecto disperso das coisas. Nada ia ainda morrer, mas tudo, como que num sorriso que ainda faltava, se virava em saudade para a vida.
Vinha, por fim, o outono certo: o ar tornava-se frio de vento; soavam folhas num tom seco, ainda que não fossem folhas secas; toda a terra tomava a cor e a forma impalpável de um paul incerto. Descobria-se o que fora sorriso último, num cansaço de pálpebras, numa indiferença de gestos. E assim tudo quanto sente, ou supomos que sente, apertava, íntima, ao peito a sua própria despedida. Um som de redemoinho num átrio flutuava através da nossa consciência de outra coisa qualquer. Aprazia convalescer para sentir verdadeiramente a vida.
Mas as primeiras chuvas de inverno, vindas ainda no outono já duro, lavavam estas meias tintas como sem respeito. Ventos altos chiando em coisas paradas, barulhando coisas presas, arrastando coisas móveis, erguiam, entre os brados irregulares da chuva, palavras ausentes de protesto anónimo, sons tristes e quase raivosos de desespero sem alma.
E por fim o outono cessava, a frio e cinzento. Era um outono de inverno o que vinha agora, um pó tornado lama de tudo, mas, ao mesmo tempo, qualquer coisa do que o frio do inverno traz de bom – verão duro findo, primavera por chegar, outono definindo-se em inverno enfim. E no ar alto, por onde os tons baços já não lembravam nem calor nem tristeza, tudo era propício à noite e à meditação indefinida.
Assim era tudo para mim antes que o pensasse. Hoje, se o escrevo, e porque o lembro. O outono que tenho é o que perdi”.
Bernardo Soares – Livro do Desassossego
dade amorim
É uma delícia ler um texto desses.
Beijos, Su.
Lunna
Que fazer além de ficar aqui respirando fundo e imaginando os cenários?
Só faltou a xícara de chá e o bolo assando no forno. ai ai ai
bacio
Cecília Romeu
Suzana,
lindo esse fragmento do ‘Livro do Desassossego’.
E o outono com suas luzes difusas a revelar com mais claridade o que a estação-sol, às vezes, não é capaz.
Agradeço pelo comentário em razão da minha parceria com o nosso amigo Jorge Pimenta, muito obrigada!
Beijos e ótimo fim de semana!
jorge pimenta
e que melhor companhia para o teu (desas)sossego senão o livro mais sombrio, mais interiorizante e inquietante de toda a literatura portuguesa? há uma adaptação ao cinema desta imensa obra de pessoa, pelo sempre criativo joão botelho (“o filme do desassossego”) que recomendo vivamente. os textos são retirados do livro e a fotografia é mesmo do melhor que já vi.
beijinho!
Suzana Martins
Oi Dade,
esse texto é realmente delicioso. O Pessoa entendia a alma das pessoas.
Beijos querida
Suzana Martins
Ah sim Lu,
com certeza… faltou o cheirinho de bolo e um delicioso chá…
Beeeeeeeijos
Suzana Martins
Obrigada pela presença Cecília,
volte mais vezes…
O outono é algo completamente encantador..
Beijos na sua alma
Suzana Martins
Nossa Jorge,
não sabia desse filme, agora fiquei curiosa para poder assistir.
Sem dúvida esse livro é um dos melhores que já li.
Beijos meu querido
Maíra K.
Pouco pode ser o meu tempo, mas um livro eu tenho sempre à mão! \o
Suzana Martins
Mairinha,
um livro é uma pequena fuga…
beijos