Por Lunna Guedes

epifanias

Era madrugada alta quando Alexandra acordou, num susto. Deveriam ser quatro horas ou mais. Os ponteiros não pareciam certos. O horário de verão já havia começado novamente, mas ela estava tão desatenta aqueles últimos dias que não se lembrava nem mesmo de ter dormido naquele seu ninho, onde tudo era tranqüila e havia sido oferecido a ela sem nenhuma exigência “é seu enquanto quiser que seja”. Aquela voz seguia em seu intimo. Suave e generosa, como de costume… O apartamento andava vazio, sem graça desde o dia em que Rayssa cruzou o oceano e não importava se elas se falavam diariamente. Não era a mesma coisa acordar pela manhã sem aquele abraço que parecia conter o mundo. Sem aquele sorriso de menina que conhece tudo e jura nada conhecer.

Os dias estavam seguindo sua rotina natural. Quase trinta. Quase uma saudade inteira. Quase uma vontade de voar para outras terras apenas para ganhar um abraço e voltar. Tudo ilusão passageira que causava sorrisos em Alexandra que preparava seu chá como de costume. Tinha dias que ela não voltava pra “casa”. Mas aquele lugar estava vazio demais. Estava quase impossível respirar. Ao contrário do que se imaginava, a viagem de Rayssa não deixou as coisas melhores. Muito pelo contrário: havia novos elementos na vida de Alexandra: novos amigos, o trabalho, as ruas da cidade, os parques, os museus. Tudo parecia roubá-la de Anne que reclamava das ausências. A redação da revista era uma extensão daquele apartamento onde ela se enfiava para se sentir segura. 

E quando percebia a exaustão causada por suas atitudes hostis. Ela recuava. Arrependia-se. Jurava que seria diferente. Era quando surgiam os presentes, os envelopes coloridos. Tudo demasiadamente repetitivo. Não precisava ser assim, mas Anne não sabia ser diferente. Ela também sofria. Duas vezes. Com a ausência e com as desculpas as quais se obrigava. Sua pele exibia uma falsa certeza de que não havia absolutamente nada de errado no que fazia. Ela estava apenas preservando o seu amor, que sufocava, machucava e já não era mais capaz de alcançar Alexandra que dia após dia se afastava um pouco mais. 

A vontade de voltar há muito estava perdida e Anne soube disso depois da última briga. Ela só queria viajar para longe daquela cidade. Daquelas pessoas. Daquele maldito novo trabalho que a tomava por inteiro; preenchendo-a sem deixar nada para ela. 

_ A gente precisa disso: eu e você. Só nós duas, sem mais ninguém. Eu pensei na Índia. Você não conhece e eu vou adorar te apresentar aquele lugar cheio de cores, de vida. É um universo novo, totalmente diferente de tudo que você já viu.
_ Eu não posso. Além do mais, com toda certeza, você iria acabar encontrando alguém ou alguma coisa que iria te incomodar. E ao invés de ficar por lá dez dias, iríamos ficar quando muito: dois ou três. A viagem se transformaria num inferno porque você iria insistir o tempo todo para virmos embora.
_Não…
_ Tem certeza que não? Por que nos últimos tempos você implica até com as sombras das árvores que segundo você: rouba-me de você. Eu estou cansada disso. Eu não sou uma propriedade com demarcações, muro, portões, grades, cadeados. Eu sou um ser humano e você está conseguindo destruir tudo que era pra ser agradável, bonito. E sinceramente eu acho que você não gosta de mim. As minhas roupas te incomodam, os meus amigos, o meu trabalho. Tudo que eu faço incomoda você. Absolutamente tudo… Eu estou cansada. Muito cansada…
_ Não diz isso. Eu juro que eu vou tentar mudar. Você vai ver…
_ Quantas vezes você já disse isso? Estamos juntos há três anos e você passou a maior parte do tempo se desculpando por causa do seu maldito ciúme, sua insegurança, sua desconfiança. Você não conhece entender a coisa mais bonita que eu tenho na vida…
_ A Rayssa?
_ Eu dispenso o seu sarcasmo. A Rayssa é uma pessoa muito querida. Uma amiga pra todo o momento, pra todas as horas. Eu achei que nós duas fôssemos ter algo próximo disso…
_ Teríamos se ela não estivesse o tempo todo presente na sua vida. Ocupando todos os espaços. Não deixando nada pra ninguém…
 

Alexandra respirou fundo. Ficou ali, imóvel por alguns minutos. Apenas observando aquela figura humana que já não era mais tão bonita quanto antes e ela já nem conseguia mais se lembrar o que havia despertado certas sentimentalidades em sua pele. Ela olhava para Anne e não via nada mais. Era apenas um corpo atormentado por algo que ela chamava de amor, mas de certo tinha outro nome. 

Rayssa dias antes tinha comparado Anne com os personagens de Sartre em “A idade da razão” onde Mathieu e Ivich são sempre, um para o outro, algo diverso do que poderiam ser, quase sempre menos ou mais do que de fato desejavam. “Não era amor o amor que Sartre tecia naquelas linhas” – dizia ela em seu e-mail. E naquele momento ficou fácil compreender que não era amor o que ela sentia, mas também não sabia como definir seus sentimentos. Rayssa achava que era encanto. Anne tinha a idade que Alexandra considerava perfeita. Tinha alcançando o sucesso. Morava sozinha, tinha um atelier e conhecia um mundo do qual até então, ela nem se quer tinha ouvido falar. Tudo isso misturado naquela feição lúcida, misteriosa e envolvente que agora parecia um desenho a carvão que tinha sido esquecido na chuva… 

Anne percebeu rapidamente que aquela discussão tinha chegado ao fim. Viu quando Alexandra passou por ela com sua mochila e saiu pela porta, deixando-a ali com seu prato. “me desculpe” murmurou para o vazio enquanto suas lágrimas se multiplicavam pelo cenário vazio daquela figura que amava mais que tudo em sua vida. 

O silêncio daquele lugar foi se intensificando lentamente até se tornar insuportável. Repentinamente, Anne se viu possuída por uma fúria incontrolável que a fez quebrar tudo que conseguiu arremessar contra a parede. Só parou quando seu corpo alcançou a exaustão e ela se viu ali em meio a destruição causada por seus atos descontrolados. O inevitável aconteceu: uma gargalhada desenfreada tomou conta do espaço enquanto seu corpo escorregava pela parede até o chão. Ela adormeceu ali mesmo e só acordou dois dias depois com o som da campainha que a fez abrir os olhos e pensar em Alexandra. Correu até a porta, mas se frustrou com a figura de sua assistente que não escondia o susto de ver aquela expressão pálida, olhos inchados, avermelhados, sem força, sem brilho. 

_ O que houve com você?
_ Não houve absolutamente nada. Agora vá embora.
Mas ela insistiu, foi fácil passar por Anne que estava visivelmente cansada e sem forças. O lugar estava um lixo. Tudo quebrado. Fora do lugar.
_ O que foi que aconteceu aqui Anne?
_ Eu já disse que não aconteceu nada. Agora vá embora. Eu não te chamei aqui…
_ Faz dois dias que você não aparece no atelier. Eu estava preocupada. Me deixa cuidar de você. Eu arrumo tudo aqui…
_ Você é uma figurinha tão deprimente. Vive se esgueirando a minha volta. Faz de tudo pra que eu te perceba. Mas eu não te percebo. Você não é nada. Não é ninguém… Agora vá embora, de vez. Nem se dê ao trabalho de aparecer no meu atelier. Eu não te quero lá também…
 

Mas a jovem assistente não levou em consideração aquelas palavras. Arrastou Anne para o banheiro, onde tirou suas vestimentas, obrigando-a a tomar um banho, enquanto arrumava a cama, abria as janelas daquele lugar que cheirava mal. Removeu as roupas de cama, trocando por novas e perfumadas. Preparou um chá preto com torradas e geléias, obrigando-a a comer. 

_ Eu não estou com fome.
_ Precisa comer alguma coisa.
_ Eu não quero…
_ Mas vai comer. Nem que eu tenha que enfiar isso na sua boca e te obrigar a engolir… 

O tom ameaçador fez Anne recuar, comendo duas torradas e tomando o chá. Foi tudo. Ela acordou dias depois. Quase tudo estava de volta ao seu lugar. Aquela menina petulante havia arrumado suas coisas, jogado o que estava quebrado fora. Mas ainda restava ela que estava em cacos… 

_ Bom dia.
_ Cadê a Alexandra? Onde ela está?
_ Eu não sei…
_ Que dia é hoje?
_ Quinta-feira. Você dormiu durante três dias…
_ Meu corpo está me dizendo isso. Eu estou com fome.
_ Isso é ótimo. Eu vou preparar um desjejum bem caprichado pra você. Me dê alguns minutos. Por que não toma um banho enquanto isso? Veste roupas novas e depois a gente pode caminhar. Vai te fazer bem…
 

Anne seguiu os conselhos de Eliana que ela chamava de “Liana”. Ela era uma jovem abusada. Gostava de antecipar os passos de Anne. Sabia que tipo de lente iria usar. O tipo de luz que gostava e conhecia de cor todos os trabalhos feitos por ela desde o inicio. Era esforçada. Não se incomodava com os desaforos disparados em sua direção e estava sempre por perto se precisasse defendê-la. 

Naquela manhã, enquanto caminhavam – Eliana soube silenciar ao perceber que Anne estava se ausentando de sua porção humana. Um fio condutor parecia levá-la para longe de tudo. Era a primeira vez em dois anos que ela se sentia de fato pronta pra sua arte. Estava vivendo tudo até a exaustão. Até que seus músculos e nervos não mais suportassem e só fosse possível um desfecho: riscos pálidos numa folha em branco que interpretariam todos os movimentos vividos até ali. Anne descobriu nas sombras o sentido que até então lhe faltava.

 

>> continua em 21/02/2011