E-pifanias. Cap 27
Por Lunna Guedes
Ela temperou o chá com açúcar, sentou-se diante da janela e ficou lá, pela primeira vez ela era o seu próprio horizonte. Sua ciência. Todas as direções terminavam ali. Havia um misto de saudades em sua derme. Seu corpo ainda sentia os braços de Anne envoltos ao seu. O primeiro sorriso ainda insistia em permanecer na moldura de sua mente e os movimentos, os mais coerentes estavam todos presentes. As palavras se precipitavam em seus ouvidos. Se não era amor, era o que então? Indagava-se enquanto aquecia as mãos com o calor da xícara que interrompia seus pensamentos por um segundo. Um gole… E tudo voltava, naquele silêncio inquietante. Sua pele parecia anestesiada. Seus olhos tinham lágrimas, mas ficavam por ali mesmo. Seus passos estavam mais lentos. Há quase duas semanas, ela não tinha notícias de Anne que estava vivendo um surto criativo.
Várias vezes, os passos de Alexandra a levaram até o atelier da Vila Madalena, mas ela ficou ali, parada do lado de fora. Faltou coragem para entrar. Voltou ao apartamento duas, três, quatro vezes. Sempre silencioso e agora com contornos estranhos. A ausência faz cada coisa. Ela sentiu os móveis da sala com as mãos. Respirou fundo. Recolheu algumas coisas suas que ainda estavam por ali e quando foi pegar o que ainda tinha de roupas naquele guarda roupas, acabou perdida nas lembranças daqueles inúmeros vestidos. Todo ano era a mesma coisa, o mesmo pedido, a mesma resposta, a mesma recusa.
Diante do espelho e de posse de uma daquelas vestimentas. Ela observou a si mesma e tentou imaginar-se com aquela peça. A careta de descaso era a resposta. Mas mesmo assim, ela despiu-se parcialmente para vestir aquela peça de cores amenas: branco com pequenas flores laranjas, amarelas, vermelhas. Ela se sentiu uma menina. Teve outras lembranças: dessa vez da cidade onde durante anos morou. Foi como voltar no tempo e ver todas aquelas pessoas observando-na e dizendo nos ouvidos uma das outras as fofocas de sempre. O sorriso não pode ser contido. Há tempos que Teodoro Sampaio não tinha espaço em suas lembranças. Sua mãe ainda estava lá e pela primeira vez em muito tempo, ela sentiu vontade de retornar aquele cidade para rever aquelas paisagens. Mas uma certeza cresceu em sua derme “deve estar tudo como antes. Nada saiu do lugar”.
Seus últimos movimentos naquele apartamento foram no sentido de colocar as roupas que iriam para a lavanderia numa sacola de papel e levar. O resto estava numa caixa e pronto. Antes de sair em definitivo dali, um ultimo olhar, uma última saudade e um lamento em tom ameno, típico de quem recria memórias a cada meio segundo. Por fim, a porta se fechou atrás dela, a chave girou no tambor, o elevador chegou ao andar e tudo foi ficando lentamente para trás. O último gesto foi o de entrega da chave para o porteiro que lamentou sua partida e foi gentil o bastante em abrir primeiro a porta de entrada que naquele momento era de saída e posteriormente a porta do carro que a levaria dali, talvez para sempre. Alexandra parecia dizer para si mesma “não era pra ser assim”.
A cidade fora de foco naquela manhã esbranquiçada, úmida, foi ficando para trás. Não que ela percebesse aquelas paisagens que nos últimos dias eram as mesmas e nada lhe diziam. Transito parado. Pessoas atravessando de um lado para o outro. Crianças vendendo doces. Jovens fazendo malabarismos. Quantos corações partidos no meio daquilo tudo? Perguntava-se ela que finalmente conseguiu sorrir enquanto batia a mão no volante do carro. Esqueceu-se rapidamente da falta de movimento do lado de fora, puxou o notebook da bolsa e se dedicou a meia dúzia de linhas.
“Não sei se o desenho serve pra agora. Pode ser precipitado. Pode conter algum engano. Mas tudo parece um sonho, desses em que a gente acaba e fica em dúvida se foi real ou não. Minha pele está agitada. Mas as vezes fica quieta e parece reclamar dos meus passos seguintes. Não sei o que sinto de fato. Desconheço essas emoções todas. Mas me vejo coberta por “saudades frescas”, os banhos dividindo o chuveiro, o sabonete percorrendo teu braço enquanto meus olhos percorrem os teus. Tudo precipitando-se aqui e e agora, em meio a transito que não sabe o que é movimento. Nossas conversas cheias de risadas gostosas parecem se repetir. Eu quero chorar, mas as lágrimas não saem dos olhos. Eu quero me libertar da sensação de vazio, mas as ausências são tantas nesse momento que parece que tudo dentro de mim foi removido: os órgãos todos. As veias. Os músculos. Os nervos. Tudo oco. Restou apenas a pele pálida, fria que sente falta das carícias da meio noite, dos olhares do meio dia. Agora tenho medo de não ser capaz de sentir mais nada. Eu sei que é um tanto precipitado pensar assim, mas desde que acordei na manhã de hoje que estou me precipitando em movimentos ilusórios, imaginários e talvez devesse mesmo fechar os olhos para abrí-los e perceber que é um desses sonhos estranhos que ficam na gente durante algumas horas, as vezes um dia inteiro, mas você em algum momento se convence de que tudo passou”…
O dia se demorou. Parecia não querer se definir. A reunião foi inquietante. Faltavam movimentos da sua parte. Os olhares em sua direção pareciam surpresos. Aquele vestido surpreendia. Ela parecia uma menina. Parecia de férias a caminho do parque. Sua mente não confeccionava idéias, só havia espaço para ausências. O esforço parecia em vão. Mas era preciso. Foi então que um estalo simplesmente pôs fim a todas aquelas insanidades “acabou, e agora?”.
_ Todo mundo um dia sentiu o sabor amargo de um relacionamento que chegou ao fim. Artista ou não. Podemos falar disso. Soube que os escritores quando terminam uma história, sofrem com a ausência de seus personagens. Não deve ser diferente com o ator que finaliza uma peça, uma novela. Ou até mesmo com um leitor que chega ao fim do livro. Ao trabalho meninos e meninas…
E o pequeno texto daquela manhã que ocupava o seu blog foi devidamente editado e transformado em editorial para a próxima edição. O sorriso havia voltado. Os movimentos também. Ritmo retomado e no final da tarde a vontade de andar pela cidade para colecionar cores, sabores e sensações. O tempo era outro. E no dia seguinte haveria uma nova marcha. Vinte e cinco anos contabilizados, mas Alexandra só gostava de contar os últimos cinco… Ela pensou em comprar um bolo daqueles de padaria, mas riu no meio da rua de sua própria idéia. Pareceu tola demais de repente. Mas acabou comprando um doce de chocolate, recheado com doce de leite e com uma cereja no meio.
_ Você teria aí uma dessas velinhas de aniversário?
_ Quer cor a senhora deseja? Temos branca, azul e rosa?
_ Eu fico com a azul. Você coloca pra mim no doce, mas não tira a cereja.
_ Tudo bem.
Com o doce em mãos, ela voltou para o carro, colocando o doce ali, ao alcance dos olhos. Vez ou outra se distaria a observá-lo. Ainda não sabia se iria ou não acender a vela. Sabia apenas que estava aprendendo a contar os próprios anos que a acometia naquele dia. Era a primeira vez que de fato se importava com aquela data. Queria receber um abraço “de urso” de sua amiga, sentar-se a mesa com ela para um diálogo demorado, um xícara de chá e um filme “a noviça rebelde” com toda certeza. Mas nada daquilo aconteceria naquela manhã que tinha tarefas especificas: cabelereiro, papelaria, mercado e lavanderia.
O carro ficou no estacionamento. Os passos se perderam entre lugares distintos. Os mesmos de sempre. Os cabelos ficaram mais curtos. Menos indóceis. As mãos ganharam pacotes: canetas, caixas de leite, algumas frutas e finalmente a lavanderia que aquela hora da manhã não tinha mais que duas ou três pessoas. Um sorriso colorido e uma surpresa para o seu olhar no outro canto. Foi preciso olhar duas vezes para se ter certeza daquela descoberta que roubou-lhe a atenção de forma precipitada. Ela tentou evitar olhar, mas não conseguia. Estava decorando aquela figura firme, forte, altiva em sua mente.
Ele a descobriu ali em seu canto. Ela inquietou-se. Deixou existir um sorriso bobo, sem graça, amarelecido, quase pálido em seus lábios. Tentou saber se o atendimento iria demorar. Queria largar tudo ali e desaparecer pela porta. Tentava respirar fundo, mas parecia não haver ar bastante naquele lugar que de repente era infimamente pequeno. Voltou sua atenção para a moça que parecia não ter pressa alguma em seus movimentos. Fazia as anotações de sempre no computador e parecia usar apenas dois de seus dedos junto ao teclado. Tudo tão lento. As pernas de Alexandra estavam trêmulas. Suas mãos frias e sua face parecia arder. Repentinamente, seus olhos mergulharam uma vez mais naquela sóbria figura humana com contornos de meio dia. Olhos amendoados, sorriso por ser desenhado. Cavanhaque bem feito, cabelos lisos e bem cuidados. Ele todo parecia ser muito bem cuidado. Blazer italiano, caro, bem alinhado, feito sob medida. Relógio de ouro no pulso, anéis em alguns dos dedos e uma elegância natural. Nos lábios um daqueles sorriso torto. Seus olhos atentos pareciam sabê-la ali e vez ou outra o olhar daquele homem, cheio de segurança parecia um relâmpago lançado na direção de Alexandra que um sorriso pequeno e tentava esquecer daquela presença tão máscula que exibia um par de rugas pela face. Era fácil dizer que ele tinha mais de quarenta. Cinquenta, talvez.
Observá-lo ali de seu canto era tão gostoso quanto um doce com o qual a gente se lambuza. Tão intenso quanto uma dose de uísque no final do dia. Tão prazeroso quanto brigadeiro de colher, comido no sofá no meio de uma noite em que a insanidade é a única a te fazer companhia.
Alexandra levou uma das mãos a testa numa tentativa de certificar-se do calor que abateu-se sobre sua derme. Sua boca seca estava ávida, parecia reconhecer sabores antigos que nunca antes haviam estado em seus lábios. Também reconhecia o silêncio daquele areal que a fez ter consciência das palavras que não poderiam ser ditas, afinal, se tratava de um estranho que prontamente agradeceu ao funcionário que entregou suas roupas, lançando em sua direção um breve aceno e foi embora. Pronto. Estava tudo acabado. Só era preciso recuperar a cor, a calma e a sensatez…
Francy´s Oliva
Por que será que a gente sempre se sente mal quando alguma coisa termina? Mesmo que o término seja previsível. Simplesmente não nos sentimos bem. É como se a gente viajasse ao redor de tudo que vivemos com aquela pessoa. Mas no caso da Alex, ela superou bem rápido, bastou umas palavras, uma reunião e o encontro com o bonitão. E agora?
Helena
Nossa, ao ler esse capítulo percebi que não será possível a Anne reconquistar a Alex. Que triste isso. Todo mundo erra e todo mundo deveria ter direito a uma segunda chance. Eu sei que vocês aqui não gostam da Anne, mas ela é humana e da mesma forma que a Alex tem lá o seus medos. O medo da Alex é anterior e o dela é posterior. E infelizmente ela não conseguiu controlar isso. Uma pena, mas será que essa aparente paixão da Alex por esse estranho não é apenas momento? Estou aqui torcendo pra que seja. Quem sabe depois, tanto ela quanto a Anne mais amadurecidas, voltem uma para a outra. Beijos meninas
Fanzine Episódio Cultural
COMO PARTICIPAR NAS EDIÇÕES DO EPISÓDIO CULTURAL?
O Fanzine Episódio Cultural é uma publicação bimestral sem fins lucrativos, distribuído na região sul de Minas Gerais, São Paulo (capital), Belo Horizonte e Salvador-BA. Para participar basta mandar um artigo: poema, um conto, matérias (esporte, arte, sociedade, curiosidades, artesanato, artes plásticas, artes cênicas, biografias, etc.) em Times Roman 12. Pode mandar também artigos que abordem: cinema, teatro, esporte, moda, saúde, comportamento, curiosidades, folclore, turismo, biografias, sinopses de livros, dicasde sites, institutos culturais, entre outros.
Mande em anexo uma foto pessoal para que seja publicada juntamente com a sua matéria.. Mande também (se desejar) uma imagem correspondente ao assunto abordado. Caso o artigo não seja de sua autoria, favor informar a fonte.
PARA ENTRAR COM CARLOS (Editor)
Facebook: http://www.facebook.com/profile.php?id=1464676950&ref=profile
machadocultural@gmail.com
Marco
Eu acho que não tem nada de pronto. tudo voltou ao normal não. Acho que vai rolar a festa entre esses dois e não vai demorar. Não vai mesmo. bacio amore mio. Grande abraço Suzana
Suzana Martins
Oi??? como é??
Perai, perai, perai…. vou ler tudo de novo e voltar com calma.
Mas só uma observação: ainda bem que a Alex acordou!!! =D
Beijos Lu
Eraldo Paulino
Embora não saiba onde essa história vai parar. Tudo cambia pra que torçamos pra que eles fiquem juntos, embora pareça um tanto impossível.
UM pouco do retrato de tantas vidas.
Bj!
Tatiana Kielberman
Uau!
Um final intrigante nos espera e quebra qualquer sensação de previsibilidade…
Talentos e coisas de Lunna Guedes!
Ansiosa pelo final!!
Beijos!
Clara
Acompanhando agora, mais do que nunca!
Beijos, Lunna!!
Su, essa novela será um marco para o seu blog… Parabéns!