Por Lunna Guedes

epifanias

Os dias seguintes trouxeram um jovem rapaz a cidade que foi recebido com indiferença e um sutil protesto, afinal, eles não gostavam de gente estranha andando por suas ruas; ocupando um lugar que não pertencia a eles e a ninguém mais. Quando Maria chegou à cidade na companhia de Zé também tinha sido tratada assim. Então era apenas uma questão de tempo.

_ Vai depender mais de você que deles. No começo não vão falar com você. Essa gente é esquisita mesmo. Leva um tempo, mas logo se esquecem que você não é daqui…

_ Tudo bem tia. Eu vou me acostumar. Só a idéia de mudar de ares já me deixou feliz. A senhora nem imagina o quanto. E a prima, cadê?

_ Está na faculdade, só chega à noite… Ela está estudando pra ser alguém na vida. Você deveria fazer o mesmo meu rapaz.

_ Ai tia, eu não levo jeito pra essas coisas de escola. Eu terminei a oitava a série no arrasto. Não foi fácil.

_ Pois a sua prima sempre foi uma excelente aluna. Sempre teve as melhores notas. A gente dessa cidade não entende: não aceita que ela não queira cuidar do bar do pai, ser costureira igual à mãe.

_ E a senhora entende?

_ E por que não entenderia? Eu sei que ela quer ir embora daqui, desde pequena que ela olha pra essa cidade de soslaio. Nunca reclamou, mas eu sei que ela nunca gostou daqui.

Maria continuava costurando as roupas daquela gente como fazia há anos e seguia fingindo não ouvir as mesmas coisas de sempre. Ela que havia chegado à cidade numa tarde de sol quente há mais de vinte anos – já havia se acostumado com aquela realidade calma e sem graça de gente que via os defeitos alheios, mas nunca os seus próprios…

“aquela mulher não tem diálogo, vive de suas linhas e pedaços de panos que ela emenda para os outros. É uma estranha. Não sei de lembrança alguma que possa ser contada sobre sua história. Lembro apenas de olhar para ela em alguns momentos e sentir uma vontade enorme de ir até ela e perguntar “quem é você?”, mas o medo da resposta sempre me deixou pelo caminho “…

As duas sempre se entreolhavam, encenavam um sorriso e se impunham uma curiosa forma de silêncio. Maria não sabia o que dizer e Alexandra nunca teve o que dizer… Não eram amigas e se não fosse mãe e filha, seria duas estranhas que com toda certeza jamais saberiam uma da outra.

Maria via a filha duas vezes ao dia, quando ela estava na cozinha preparando seu leite com chocolate pela manhã e quando se sentava na sala a noite para ver o noticiário enquanto saboreava a salada que ela mesmo comprava e preparava, já que nunca gostou da comida feita pela mãe que tinha aquela maldita mania de comprar quirera no lugar de arroz porque era mais barato, e de comprar pescoço de frango, de onde retirava o pouco de carne que havia e preparava como mistura. Alexandra nunca conseguiu comer nada daquilo, talvez por isso seu peso não ultrapassasse os cinqüenta e cinco quilos.

Era Maria quem fazia as roupas da filha: camisetas brancas e vermelhas, calças jeans e bermudas em estilo italiano. Quando soube que Alexandra iria pra faculdade, comprou tecido e fez meia dúzia de camisas, duas com mangas curtas, duas com mangas compridas e duas sem mangas. Improvisou uma gravata, aproveitou uma roupa velha do marido para fazer um blazer e fez duas calças sociais cujo modelo ela tinha visto em uma revista. A filha não entendia de moda, nunca pediu para comprar roupas porque sabia que havia pouco dinheiro na casa e não era de reclamar. Mas ela se ressentia de ver as outras moças mais bem vestidas que sua filha e sempre que podia, dava um jeito de sobrar tecido para fazer peças de roupas novas para Alexandra que sorria, vestia e fingia que gostava, se de fato gostava, era apenas mais um dos mistérios daquela menina que se preocupava mais com palavras que com comidas e peças de roupas.

A casa onde eles viviam era pequena, mas tinha dois quartos, um banheiro, uma sala e uma cozinha. Todos os cômodos eram grandes. Eles alugavam a garagem para um senhor viúvo, já que não tinham carro, mas o marido sempre achou que em algum momento iria comprar um fusca por isso quando fez a casa, fez também a garagem. O quintal grande foi um pedido da esposa que gostava de plantas e passava horas cuidando de seus “matos” que era como o marido chamava suas folhas, flores e verduras. Ela plantava de tudo: cenoura, alface, tomate. Tinha uma goiabeira e um pé de lima da pérsia que era seca e ninguém chupava, mas ela gostava da beleza da árvore que para Zé era igual a todas as outras. Ela dava de ombros e continuava cuidando de suas “meninas”. Era sua alegria, uma das poucas que tinha.

Alexandra gostava do cheiro da terra molhada e do sabor da alface fresquinha que sempre acabava em seu prato devidamente temperada. No mais, achava graça ver sua mãe com as mãos sujas de terra e com aquele sorriso nos lábios.

“aquela mulher sem diálogos conversa com as plantas pelas manhãs e nos fins de tarde. Quando rega as suas“meninas” é como se a solidão se esvaísse em lágrimas pelo chão. Então ela se acalma e sabe que não pode fazer absolutamente nada. Só pode mesmo despertar pela manhã e ser a mulher que sempre foi. É tarde demais pra ser diferente, ela deve pensar e em sua conversa com a lima da pérsia, ela deve dizer “pra que mudar se eu já estou acostumada com esse cenário de vocês?”

E diante da possibilidade de tão poucas lembranças acerca daquela mulher, ela guardou três sementes da lima e algumas que caíram pelo chão depois de uma dessas ventanias rebeldes.

image

>>> continua…

Próximo capítulo 06/12/2010