Por Lunna Guedes

epifanias

image Fazia três anos que Alexandra tinha descoberto que café era para ser degustado como se fosse vinho e não engolido como sua mãe ou as pessoas de Teodoro Sampaio costumavam fazer. Café era uma bebida agradável e quando bem preparada era uma espécie de licor dos Deuses. O seu favorito era vanilla expresso com aquele pequeno biscoitinho de gengibre que derretia na boca. Ela sempre comia dois quando estava com Rayssa que abria mão do seu colocando-o no pires de Alexandra que achava graça daquele movimento lento, meio clandestino por parte da amiga. A lembrança fez florescer um sorriso instantâneo tão natural que deixou Anne curiosa. Por um instante, parecia que aquela jovem havia se esquecido onde estava e com quem estava.

O silêncio ficou ali entre as duas durante um bom tempo. Anne seguia saboreando cada movimento inventado por Alexandra que levava a xícara de café até a boca com as duas mãos e às vezes ficava saboreando aquele cheiro que parecia lhe dar asas. Às vezes o olhar dela a descobria ali e era como se alguém, em algum lugar, não muito longe estivesse interpretando uma poesia e o sorriso voltava como se perguntasse “o que é que você está olhando?” e então se perdia com um movimento que surgia ao lado: eram pessoas passando, luzes piscando, carros se atropelando. Tudo parecia capaz de gerar distração naquela jovem alma que parecia estar despertando para a vida somente agora.

_ Quantos anos tem Alexandra?

A pergunta gerou um novo sorriso em meio a uma lembrança agradável que a fez sentir vontade de imitar sua amiga, dizendo “a idade do vento” como se somente agora aquela frase de fato fizesse algum sentido. Mas ao invés disso, ela respirou fundo, buscou pelo olhar daquela mulher cuja tonalidade de pele lembrava um pêssego importado e acariciando suas próprias lembranças disse serenamente.

_ Quase vinte…
_ E que idade é essa? Pra mim o “quase” não significa coisa alguma.
_ Melhor ainda, porque assim você pode ter uma consciência atemporal acerca da minha pessoa. Eu gosto disso.
_ Está se divertindo, não é mesmo?

Mas a pergunta feita não encontrou resposta, foi como se uma brisa sobrevoasse aquela paisagem, espantando pra longe qualquer resposta. Anne viu o olhar de sua convidada voar para longe. Alexandra tinha voltado à galeria e de repente estava diante daquela fotografia que exibia a mulher diante da janela e lá ficou até que percebeu os olhos de Anne sobre os seus.

_ Será que eu posso te fazer uma pergunta?
_ Claro que sim Alexandra. Pode perguntar o que quiser.
_ Quem de fato é Anne Letrech? – o olhar de Alexandra havia se voltado repentinamente para Anne que vestiu seu melhor sorriso naqueles lábios cor de café expresso. Ela uniu as mãos apoiando o queixo sobre elas num movimento lento, gostoso de ser apreciado. Parecia haver um conforto natural naquele semblante iluminado pela falsa luz daquele lugar.

_ Eu sou muitas coisas há muito tempo. Fotografa é apenas uma delas. Eu gosto de desenhar, pintar, inventar formas, cenários e fundamentalmente gosto de descobrir olhares. Eu fotografei seu olhar lá na galeria. Assim como você, eu também fico anestesiada quando me vejo diante de um olhar tão repleto de possibilidades.

Então, num relance inesperado, as duas voltaram as suas formas peculiares de silêncio, se entreolhando como quem investiga o outro e se delicia com a colheita feita.

_ E por que a fotografia?
_ E por que as palavras?
_ Por que elas exteriorizam a minha alma…
_ Eu devo confessar que estava ansiosa por conhecê-la. Eu estive em Piracicaba por sua causa. Quando li o que disse sobre o Robben, eu precisei ir até lá. “nuances de arsênico e moléculas de desespero. O choro não se prende aos olhos e a dor não vem de dentro pra fora. Ela transpira em cada peça e te alcança como navalha que corta até o osso”. Foi o que você disse. Eu não tinha enxergado nada disso e fui a fotografa da exposição dele aqui em São Paulo. Você me causou um desespero tão grande que eu precisei espalhar todas as fotografias que eu fiz sobre a mesa e não foi o bastante pra mim. Eu precisei ir até lá e colher a dor da qual você tinha falado. E doeu muito quando eu entendi o que você tinha visto. Foi então que eu percebi que eu precisava saber o que você sentiria com a minha arte. Eu adoro tudo que você escreve. Tem paixão, entrega, uma espécie de devoção e tem você. Poucas pessoas conseguiram me fascinar como você conseguiu…

Anne buscou pela mão de Alexandra que estava ali sobre a mesa. O carinho repentino causou um susto inicial. Aquele toque pareceu desnudar sua pele de menina ainda por se descobrir. Um arrepio percorreu a extensão de seu braço encontrando aconchego em seus cabelos que precisaram ser contidos num movimento lento que os levou para trás das orelhas. Ela quis recolher a mão, conter aquele desacerto momentâneo, mas não pôde e se deixou ficar ali, presa aquele conforto infinitamente desconfortável que fez Alexandra se lembrar de tempo e espaço e como resposta a tudo que sentia naquele instante, ela se apressou no descompasso.

_ Já é tarde: eu preciso ir. Estou na casa de uma amiga e não quero causar preocupações desnecessárias. Eu agradeço pelos convites. Foi uma honra pra mim.
_ Eu te levo até lá. Meu carro está no estacionamento. Eu não me demoro…
_ Por favor, não é necessário. E tem sua exposição.
_ Eu faço questão. É o mínimo que posso fazer…

Foi impossível recusar a oferta entregue em suas mãos através de movimentos delicados e uma voz tão macia que parecia abraçar aquele corpo tão sensibilizado que naquele momento estava envolto numa sonora confusão de sentimentos vários.

Durante todo o trajeto até a casa de Rayssa o silêncio se fez presente. Os sorrisos se multiplicavam em Anne da mesma forma que o temor nas veias de Alexandra que parecia indócil. As ruas se multiplicavam pela frente e o percurso parecia muito maior que antes. Os arvoredos das ruas desenhavam sombras inusitadas ao longo das calçadas e os semáforos pareciam se demorar naquela metamorfose de cores primárias. O sorriso nervoso de Alexandra era delicioso e aprazível, tinha cheiro de tinta fresca e tela em branco a esperar pelos riscos do pincel em transe.

Repentinamente, Alexandra percebeu que diante de Anne ela era outra pessoa: mais experiente; absurdamente consciente de seus atos e pensamentos, ao mesmo tempo em que também era misteriosa e sensual. Diante de tal percepção, ela se desajustou ainda mais como se não fosse capaz de entender seus próprios passos diante de uma rua sem saída.

Então o carro parou diante do portão cinza que parecia encerrar os muros que rodeavam toda a casa escondendo os troncos dos altos pinheiros, dos quais só se podiam ver as folhas iluminadas por luzes de amarelecidos tons. O silêncio permanecia imutável até Anne finalmente dizer alguma coisa.

_ Está entregue moça do interior. Quero que saiba que eu adorei cada segundo na sua companhia e espero te ver antes da sua partida. Já sabe quando volta pra casa?

O silêncio permaneceu. Nenhuma palavra dita, apenas o movimento negativo da cabeça que se agitou de um lado para o outro. Era como se as palavras simplesmente tivessem desaparecido daqueles lábios que se mordiscavam numa ínfima existência de inferno e insensatez.

Anne compreendeu aquela resposta e procurou pelo rosto de Alexandra num beijo doce que antes de aterrissar naquela pele macia, triscaram os lábios da menina que chegou a sentir o sabor de café junto aos seus lábios. Era uma ilusão que causou mais um susto naquela noite. Ela murmurou uma despedida “boa noite” saltando do carro e sem sequer olhar para trás, passou pelo portão apressando-se em passos largos até o interior da casa onde estavam Rayssa e sua mãe que respirou aliviada ao vê-la entrar.

Alexandra estava pálida, suas mãos frias, suavam num misto de desespero e pavor. Tudo inusitado, cava veia de seu corpo parecia se manifestar. O coração acelerado pulsava forte no peito, mas era possível senti-lo também nas pernas, nos pulsos, nas linhas do pescoço e dentro de seus ouvidos.

_ Boa noite Alex. Como foi a exposição minha querida?

Mas tudo que houve da parte de Alexandra foi um aceno breve e passos que se precipitavam junto às escadas, numa espécie de fuga que a levou para o quarto deixando em Mari uma névoa de preocupação que Rayssa dissolveu rapidamente.

_ Não se preocupe dona Mariana… Ela está bem. Só precisa ficar sozinha para lançar um pouco luz sobre a sua própria escuridão.
_ Tem mesmo certeza que ela esta bem?
_ Claro que tenho. Ela vai entrar no quarto, trancar a porta, dar meia dúzia de passos ainda desorientados. Vai colocar uma camiseta larga, olhar pela janela, lembrar-se daquela cidadezinha insossa e depois vai ligar o computador. Vai sorrir, beber um copo de água, alongar os braços e sentar. Em poucos minutos: toda aquela exposição vai passar pelos olhos dela e todas as sensações sentidas na noite de hoje vão virar um texto que você poderá ler pela manhã…

“O que será que revelaria nosso olhar se a cada passo dado um flash iluminasse a paisagem, disparado por um artista que compreende o valor do vazio e da identidade de cada movimento por nós realizado dentro de um cenário, no caso: uma cidade? Anne Letrech parece fazer exatamente isso, como se prestasse uma singela homenagem a cor do espaço e as pessoas que o ocupam. As fotografias espalhadas cuidadosamente por cinco paredes exibem sorrisos, pessoas, lugares, objetos e tantos outros elementos que parecem saltar aos nossos olhos em cenas cotidianas que simplesmente participam do nosso dia a dia. Mas a distração e a pressa nos privam desses detalhes que estão lá, mas é como se não estivessem. Anne Letrech nos toca com sua lente e acaricia as nossas mais densas emoções como se sua mão direcionasse nosso olhar e nos dissesse: veja”…

Alexandra2

>>> continua…

Próximo capítulo 10/01/2011