Por Lunna Guedes

epifanias

image Já havia se passado dias desde que Alexandra havia escrito aquele post, mas nenhuma sensação desapareceu de sua pele como antes. A escrita culminava com o silêncio e a ausência; quando tudo em sua pele virava poeira e um simples sopro levava tudo pra longe. No entanto, ela caminhava pelas ruas da Paulicéia ao lado de Mari e sempre que se distraia, descobria os olhos amendoados de Anne em outros olhos que não o dela. O mesmo sorriso virava esquinas e vinha ao seu encontro. O jeito doce de olhar, os movimentos poucos que ela tinha apreciado. Estava tudo ali, até mesmo aquele beijo que era apenas uma sombra causada por um pálido sol bem no meio da tarde que já se apressava pelo oeste da cidade. Mais alguns minutos e com certeza o crepúsculo estaria ali a atropelar os ponteiros regidos pelo insosso horário de verão que deixava o dia mais longo que o habitual… Ela sentia a respiração de Anne tumultuando seu rosto como se fosse o vento morno ou uma brisa fria a acariciá-la suavemente. Um delírio que se atormenta e persegue e não importa para onde os passos se movam, a sensação persiste.

Da Oscar Freire a Vila Madalena – de um canto a outro em poucas horas. Nada se percebeu. Nem as caixas ou sacolas com roupas escolhidas por Mari para aquela jovem que seguia desfilando roupas feitas por sua mãe. Ao menos até aquela tarde. Os cabelos receberam mechas mais claras, tiveram seu tamanho reduzido até os ombros; mas aquela nova figura desfilando no espelho só tinha um desejo naquele momento “voltar para casa” onde a paisagem de sua janela não lhe causava tumultos e tão pouco, sensações desagradáveis…

Passava das nove da noite quando Rayssa entrou no quarto para saber como tinha sido as compras e surpreendeu-se com a mala de sua amiga sobre a cama, quase pronta. O olhar de Alexandra visitava a paisagem daquela janela que nada lhe oferecia e ela só queria se sentir segura.

_ Nossa. Posso saber o que esta causando tudo isso?
_ Eu só quero ir pra casa. Meu lugar não é aqui. Eu estava enganada. Essa cidade não é pra mim. As pessoas estão certas quando dizem que ela é um monstro e que te devora sem que você perceba.
_ Eu queria muito que você conseguisse ouvir tudo que está dizendo. Mas no momento eu me contento em saber a causa de tanto medo. Eu já vi isso antes…
_ Viu o que?
_ Todo esse medo que está aí ancorado em sua pele. Eu estava lá, lembra-se? Você olhava pra mim como se eu fosse uma vertigem ou um delírio só seu. Mudou os seus hábitos. Parou de freqüentar a biblioteca. Nem se sentar as sombras das árvores você se permitia e isso durou até eu jogar aquele livro de Eliot sobre sua mesa. Não dá pra esquecer algo assim.
_ É totalmente diferente porque eu não fiquei imaginando coisas. Eu apenas evitei você. Não fiquei sentindo coisas. Nem fiquei vendo você por todos os cantos por onde eu passava.
_ Se apaixonou por alguém?
_ Claro que não. Como você pode achar que eu me apaixonaria por ela… Isso é absurdo. Não é normal…

Rayssa exibiu aquele sorriso desalentador em seus lábios; por um pequeno instante ela teve certeza de que Alexandra tinha passado tempo demais numa cidade pequena e embora não percebesse, estava agindo da mesma maneira que eles. Ela estava julgando e condenando seus próprios sentimentos como se eles fossem a pior coisa a existir. Não era natural. Uma mulher deve amar um homem e não uma mulher. Isso era inconcebível. Violentava as leis naturais e tudo que ela conhecia como certo e errado.

_ Você acha mesmo que voltando pra Teodoro Sampaio tudo isso vai desaparecer?
_ É claro que vai. Sempre desapareceu… A culpa é dessa cidade e seus conceitos contemporâneos. Sua modernidade exacerbada. Ninguém aqui parece se lembrar dos costumes mais simples.
_ Se quiser uma bíblia, eu posso providenciar pra você. Mas não espere que eu faça parte do seu culto e nem espere que diga amém para o monte de bobagens que você está dizendo. Mas quer saber? Eu acho que você tem razão, volte pra Teodoro Sampaio e leve com você todo esse preconceito que você trouxe de lá porque eu vi a forma como aquelas pessoas olhavam pra nós duas e pra elas, a gente estava tendo um caso amoroso. Estávamos nadando nuas nas águas da Represa do Doca. Se beijando entre as ervas daninhas e se acariciando nas encostas. Eu sei que foi por isso que a sua mãe não quis mais que eu fosse a casa dela e você nunca teve coragem de me dizer o que ela te disse, não é mesmo? Preferiu respirar fundo ao perceber que eu tinha me afastado…

Os olhos de Alexandra ficaram embaçados com as lágrimas que surgiram por ali. Uma vergonha havia crescido em sua derme e ela abraçou a si mesma como forma de se proteger. Estava ferida e era ela mesma quem havia feito sangrar sua derme. Ela não sabia o que dizer. Procurava por palavras, mas elas não estavam disponíveis. Queria desaparecer, mas não havia como. Rayssa permanecia ali fazendo sombra em seu olhar.

_ Eu vou tomar um banho porque eu tive um dia cheio. Eu sei que não perguntou e talvez nem pergunte, mas eu te conto assim mesmo. Meu apartamento está quase pronto e eu gostaria muito que você o conhecesse antes de ir embora. Pode ser?

Ela quis dizer não, afinal, sua vontade de ir embora era maior que qualquer outra coisa, mas assentiu, afinal, Rayssa era sua amiga e amigos fazem sacrifícios um pelo outro… E aquele seria o seu sacrifício em nome daquela amizade que de repente parecia arranhada.

>>> continua….

Próximo capítulo 12/01/2011