Por Lunna Guedes

epifanias

image A noite caminhava na lentidão dos passos de Alexandra que saltou do ônibus um ponto antes propositalmente. Ela queria sentir o vento que transitava pelos quarteirões. Ouvir vozes estranhas. Mas acima de tudo, queria tentar não pensar naqueles últimos acontecimentos. Estava chateada.

O rosto nu, maduro, sensível que passeava em sua memória não era o seu. Era daquela mulher de quarentas vidas, muitos destinos, inúmeras ousadias, alguns romances fracassados, grandes conquistas e dezenas de sonhos… Anne era uma mulher notável. Seu olhar tinha uma força pouco comum e que Alexandra desejava ter em si mesma. Ela não escondia a admiração que sentia por aquela figura humana que era capaz de coisas incríveis… Mas naquela noite ela havia conhecido um lado de Anne que ela preferia que continuasse longe da luz… Aquele punhado de palavras seguiam atormentando sua mente. Se repetiam seguidamente. Como era possível meia dúzia de dizeres inúteis fazerem tanto barulho? Indagava-se ela enquanto transitava por aquelas calçadas irregulares. Vez ou outra descobria um estranho próximo ao seu corpo fragilizado. Tudo muito rápido, feito sombras que cessam diante do sol…

Meia hora mais tarde, Alexandra chegou em casa. Tentou não fazer barulho. Estava tudo escuro, mas como já conhecia décor todo aquele recinto, sentiu-se a vontade ao caminhar até o seu quarto. No caminho observou as luzes por entre as frestas da porta do quarto de Rayssa que estava na cama, assistindo televisão, lendo algum livro e ouvindo músicas. Tudo ao mesmo tempo como somente ela mesma conseguia fazer. Na certa, em dado momento, saltaria para cima do computador a fim de tomar notas de alguma idéia acerca de um ou outro personagem. Ela costuma dizer “é preciso muito cuidado para não se perder uma história inteira por causa de um simples vacilo da minha parte”. Isso seria um inferno”. – era impossível não rir com aquela lembrança, mas Alexandra estava contida. Não queria companhia. Queria apenas tomar banho e se esquecer em algum canto, mas depois de algum tempo, caminhou a passos lentos até o quarto da amiga que apenas sorriu ao vê-la.

_ Oi. – disse ela sem demonstrar surpresa alguma. Aquela era Rayssa que deu tapinhas de leve sobre a cama. Era um convite e este foi aceito imediatamente.
_ De novo esse filme?
_ Novamente. A noite estava pedindo esse filme e como eu sou uma pessoa muito atenciosa com os pedidos que me são feitos: atendi prontamente…

Alexandra já havia perdido a conta de quantas vezes sua amiga tinha assistido “A noviça rebelde” desde que a tinha conhecido. E naquela noite ela tentava imaginar quantas vezes ela já o tinha assistido ao longo de seus vinte e poucos anos. Tudo muito rápido. Um sorriso e a idéia simplesmente se perdeu num abismo secreto e silencioso. Era para lá que deveriam ir outras palavras também, mas estas continuavam por ali a fazer barulho.

_ Posso te pedir uma coisa?
_ Claro que pode.
_ Se eu fosse uma dessas pessoas que você encontra por aí e transforma em personagens. Como eu seria?
_ Quando eu te encontrei você era uma menina de vinte vidas, muitas decepções, anos de espera, distrações, enganos e insatisfações. E eu senti que você queria ser uma mulher de quarenta vidas, muito sucesso, realizações, um grande amor, uma profissão brilhante, um lugar pra chamar de seu e um alguém pra abraçar no fim de mais um dia.

Alexandra respirou fundo, enxugou uma lágrima traiçoeira que percorreu seu rosto até ser alcançada por sua mão e se distraiu com aquela cena do filme onde o Capitão declarava seu amor a Maria. A cena favorita de Rayssa que sabia muito bem o que havia acontecido naquela noite, mas não fez perguntas e tão pouco comentários.

A manhã seguinte trouxe flores e um pequeno cartão colorido que foram recebidas com descaso por Alexandra que deu de ombros para aquele pedido de desculpas que foi apenas o primeiro de uma série: bombons esquecidos sobre a mesa da sala, telefonemas não atendidos, e-mails não lidos e por fim a visita tardia que não pode ser evitada.

_ Eu já não sei mais como pedir desculpas Alexandra. Por favor. Eu sei que eu errei, mas será que você nunca cometeu um erro em toda a sua vida? Me desculpe, mas eu só errei porque eu te amo demais…

Alexandra estava imóvel, em silêncio, com os braços cruzados. Parecia incrédula, afinal, de repente era como se amar justificasse absolutamente tudo. Em seu íntimo só havia uma certeza “o amor não pode servir de desculpas para todos os erros que cometemos”.

_ Eu posso te convidar pra tomar um chá comigo?
_ Não…
_ Vai ser assim então? Eu cometo um erro e você não quer mais me ver?
_ Eu não disse que seria assim.
_ Mas é exatamente isso que está parecendo. Há dias que eu estou tentando falar com você. Te mandei flores, bombons, cartas. O que mais que eu posso fazer?
_ Eu não pedi pra você fazer nada disso Anne.

Anne se aproximou de Alexandra entregando em seu rosto um carinho de mãos. Leve. Suave. Houve tempo para um pequeno sorriso antes que ela simplesmente fugisse daquele toque. Insatisfeita. Cabisbaixa. Ela respirou fundo, vasculhou o caminho até a porta e ensaiou uma caminhada sem olhar para trás. Não era nada disso que ela havia planejado e não realizar o que desejava era um incomodo muito grande. Mas obviamente não iria desistir.

_ Você não vem? – indagou Alexandra que estava segurando a porta do elevador enquanto esperava por Anne que sorriu ao ouvir o convite, o qual atendeu prontamente. Subiram em silêncio, cada qual ocupando seu próprio espaço.

image Alexandra sentia o perfume adocicado de Anne e lembrava-se do tempo em que esperava pela chuva no meio da tarde lá naquela pequena cidade que aos poucos começava a desaparecer de sua mente. Será que um dia seria como se nunca tivesse estado lá? Ela queria acreditar que sim. E o sorriso que ocupava seus lábios seguia para os lábios de Anne que sabia muito bem que aquela menina estava crescendo e dentre pouco tempo não seria nem mais a sombra daquela figura pálida que ali estava. Havia tanto para crescer naquele ser humano e isso era algo que ela desejava acompanhar de perto.

Primeiro as mãos das duas se encontraram; depois os olhares se prenderam um ao outro e ficaram assim até a porta se abrir no penúltimo andar. O silêncio permaneceu até ser finalmente quebrado por Anne.

_ Não faz idéia do medo que eu senti. Eu achei que…

Mas o silêncio voltou repentinamente aos lábios de Anne que foram povoados por um beijo calmo, gentil e cheio de uma lucidez deliciosa. Era quase noite e tarde demais para que fossem a outro lugar que não aquele porque seus corpos precisavam descansar de todas aquelas aflições desnecessárias. Era preciso mais que tudo se ausentar dos movimentos lá de fora porque ali dentro daqueles corpos tinha um pedaço um do outro e era preciso cuidar do que se conquista para não se perder nas sombras que são inventadas ao longo das horas.

>>> continua…

Próximo capítulo 02/02/2011