Por Lunna Guedes

epifanias

image “Chove em São Paulo. Setembro chegou trazendo águas, desenhando saudades e passos por todos os lados. O tempo, depois do desassossego de agosto voltou a se movimentar. Fato. Ele parecia ter feito uma pausa. O som dos trolebus ainda me causam sorrisos. O gato (imaginário) inventa sons junto a janela que segue fechada porque a artista está criando: imune ao tempo, espaço, aos sons e aos movimentos. Gosto de quando tudo fica assim: lá fora a chuva, e mais nada. Mais nada. Anne entra e saí dos cômodos, e sempre é como se fizesse isso pela primeira vez. Fica parada, me espiando e acha que não sei de sua presença. Ela sorri satisfeita e pressente em suas ações que nunca haverá tempo o bastante para nós duas. Está tudo tão calmo, mas eu sinto falto de abraços que me chegam em palavras cheias de entusiasmos que são deixadas junto aos meus ouvidos ou aos meus olhos. Mas há sempre ausência que não se desfaz. A menina e suas tempestades ensaia um retorno, mas depois de tantos dias, já começo a duvidar de sua volta. Eu sei que ela volta, mas quando? Rayssa precisa de vento, montanhas, nuvens, livros e páginas em branco. Rayssa precisa subir escadas, descer ladeiras, atravessar ruas e no momento eu preciso ser como o gato (imaginário) que inventa movimentos e sons e finge estar aqui dentro. Eu? Eu também finjo… Finjo estar lá fora”…

Naqueles meses inteiros, cheios de dias e semanas, Alexandra voltou ao velho caderno de capa preta. Ela tinha novamente os seus segredos. Depois de descobrir que Anne se ressentia de seus escritos sempre que tinha uma só direção “a menina de tempestades”. Nome inventado depois de ler uma crônica escrita por Rayssa acerca dos sabores da tempestade.

image A viagem de Rayssa havia permitido uma trégua entre Alexandra e Anne que vivia seus melhores dias e fazia de conta que não ouvia as palavras carinhosas junto ao telefone que sua amada dedicava a amiga. Também ignorava os sorrisos diante da tela do computador pelo qual passou a nutrir uma espécie de ódio silencioso. Desejava que ele queimasse e como sabia que era um item precioso para o trabalho realizado por Alexandra, acabou comprando um mais novo, moderno, cheio de facilidades. Tudo para que o presente dado por Rayssa não ocupasse mais espaço diante de seu olhar.

Anne se multiplicava em presentes. Sempre que sentia náuseas excessivas por causa de Rayssa, comprava algo novo: na maioria das vezes eram vestidos delicados, leves, coloridos, de cores únicas, tamanhos variados. As vezes comprava sandálias para que assim pudesse ver os pés da amada, os quais ela adorava acariciar com creme de amendoas, escolhido por ela para os momentos de leitura. Ouvir a voz de Alexandra na última hora do dia era sua poesia. Os versos ficavam mais intensos e as linhas do romances mais interessantes.

Sem perceber, Alexandra se deixava moldar ao sabor de Anne que sempre tinha desculpas para fazê-la ficar. Dias inteiros. Semanas também. Um quarto foi pintado com a cor do vinho que ela tanto gostava. Móveis comprados. Livros encomendados. Cadeiras confortáveis. Prateleiras. Estantes. Tudo feito para expulsar de uma vez a presença de Rayssa daquela vida que agora devia exclusividade a uma só pessoa.

E todo dia uma pequena flor era deixada sobre a mesa com um cartãozinho que dizia “razão da minha vida, eu amo você”. Na primeira vez foi só alegria. Um suspiro intimo e profundo. Na segunda vez um sorriso gostoso, manso, de menina. Mas nas outras vezes, era apenas um olhar e a certeza de saber o que dizia aquele pedaço de papel sem graça. Afinal, já se sabia, amanhã voltariam: a flor pequenina e seu cartão com palavras repetidas. Não era preciso esperar. Não era possível esquecer.

Anne vivia seu melhor momento. A inspiração tinha nome e brotava de sua pele com extrema facilidade. Horas inteiras de trabalho se acumulavam ao longo dos dias. Uma semana inteira foi precisa para ele confeccionar sua nova exposição “oito e meia”. Sucesso de crítica, mas que nada dizia para Alexandra que respirou fundo quando precisou escrever sobre aqueles enganos que saltavam das telas para cima dela.

_ Não entendi nada Rayssa. Aquelas telas parecem tão vazias. Caricatas. E se eu escrever isso, vamos ter novas tempestades por aqui. Acho que eu estou cansada. Quando é mesmo que volta? – indagou ela ao telefone num dos raros momentos de silêncio e solidão que ela conseguia. Do outro lado, a lucidez de alguém que enxerga multidões inteiras e sente sozinha na maior parte do tempo porque não faz parte da marcha. Faz parte apenas das ilusões que saltam das mentes que descobre. As vezes era preciso apenas um olhar no momento certo para que o silencio se transformasse em barulho. As teclas se multiplicavam naquele quarto de hotel, tão indiferente a ela quanto ela a ele.

O que Anne não percebia era que suas atitudes não prendiam Alexandra a sua derme. Muito pelo contrário. Afugentava a menina que não lhe contava sonhos, desejos e ilusões. A menina criava gatos imaginários em meio a conversas longas com Rayssa que lhe perguntava gentilmente “e o gato, está fazendo muito barulho na janela?” e o silêncio era preenchido com sorrisos espaçados que faziam eco pelo ar. Ninguém entenderia de certo, mas não era preciso que mais alguém compreendesse.

Chovia demasiadamente naquele fim de tarde de setembro e atravessar a cidade em meio aquele temporal não seria tarefa fácil. O mais prático era se recolher ao apartamento que de seu só tinha a lembrança. Alexandra só se deu conta de que praticamente havia se mudado para o apartamento de Anne ao adentrar em casa e ver tantas sombras familiares. Toda aquela calma fez surgir a vontade de ir para a cozinha preparar um chá de ervas. Ouvir o barulho aconchegante do apito da chaleira se espalhando pela casa. A xícara na segunda porta do armário. O chá na gaveta de baixo, dentro de uma graciosa lata e o silêncio gritando “faz um pra mim de morango”. O sorriso inevitável floresceu e já de xícara em mãos, ela caminhou por aqueles cômodos cheios da presença de Rayssa que dizia sempre “quando você menos esperar eu estarei de volta”. Mas o tempo passava e a ausência permanecia…

imageSeus passos a levaram de encontro ao seu antigo quarto, com seus cheiros, contornos e uma pequena surpresa sobre a cama que fez seus lábios se precipitarem num sorriso amplo e irrestrito. Seus movimentos eram rápidos, iguais a de uma criança que acaba de ser agraciada por um presente inesperado. A caixa revelava centenas de folhas sobre o título “traídos pelo desejo” e ali junto a soleira da porta, uma jovem de tempestades se mantinha em silêncio, enquanto espiava tudo atentamente.

Alexandra teria devorado todas aquelas páginas se não tivesse sentindo que a ausência que nutria ao longo de todos aqueles dias tinha simplesmente desaparecido. O olhar das duas desenhou sorrisos naquele breve espaço de existir. O reencontro gerou abraços apertados e uma cobrança.

_ Quem disse que poderia ficar tanto tempo longe? Morri de saudades…
_ E o gato? Ainda faz muito barulho na janela?
_ Não. Eu pus ele pra assistir a noviça rebelde. Sabia que ele não achou graça?
_ Eu posso imaginar. Nem é a epoca certa. E você se esqueceu de servir uma taça de vinho pra ele.
_ Gatos não bebem vinho.
_ Eu nunca tinha ouvido falar de um gato imaginário que não pudesse beber vinho. Acho melhor inventar ele de novo e por favor, dessa vez, corrija os equivocos…
_ Eu senti falta disso. Você nem imagina o quanto… Mas agora vá embora. Eu tenho uma novela pra ler. – disse ela em meio a sorrisos largos, espaçados, enquanto empurrava Rayssa pra fora do quarto e fechava a porta. O mundo de sua amiga agora lhe pertencia.

Enquanto isso a chuva castigava as ruas, espantava a escuridão com relâmpagos e tumultuava o silêncio com seus trovões. Muita gente corria pra casa, em meio a poças que anunciavam possíveis transtornos. O transito mais lento. Os passos mais rápidos e as agonias multiplicadas. O olhar de Rayssa pela janela parecia compor pequenos epitetos, enfileirados. Ela estava de volta ao mundo real das coisas, onde ficaria de certo por algum tempo até encontrar um mundo novo que a levasse pra longe daquela realidade com sons de campainhas frenéticas que exibiam pressa em seus movimentos. Ela não tinha pressa e caminhou até a porta com a calma que lhe era tão peculiar. Era Anne que não escondeu a frustação ao encontrá-la.

_ Rayssa? Então está de volta? Entendo… E pensar que a Alexandra me disse que vinha pra cá por causa da chuva.
_ Como vai Anne Letrech? – cumprimentou Rayssa enquanto ignorava tudo que era dito por Anne que foi abandonada junto a porta por aquela “jovem petulante” que só sabia trazer incomodos para a vida daquela artista plástica que quis acreditar durante algum tempo que Rayssa simplesmente iria desaparecer.

_ Eu soube da sua nova exposição. Também soube que ficou muito aquém das expectativas. A crítica não foi nada gentil com você.

Anne respirou fundo diante daquele infeliz comentário que parecia ter sido usado como forma de dizer “eu falei com a Alexandra o tempo todo”. Ela por sua vez respirou fundo e tentou superar aquela presença desagradável.

_ Mas a Alexandra adorou.
_ Mesmo? – ironizou Rayssa que sabia a verdade por trás daquela ilusão.
_ Não leu o que ela escreveu no blog? Pensei que lesse tudo que ela escreve porque eu leio. Eu conheço cada palavra escrita por ela…
_ Imagino que sim. – um sorriso perverso ganhou forma nos lábios de Rayssa que já sabia da volta dos famosos cadernos de capa preta. Ela precisou se conter, afinal, em dado momento ela sentia vontade de torturar aquela figura humana com dizeres, caretas, formas inusitadas de silêncio. Era muito divertido vê-la se retorcendo, mas havia Alexandra e por ela era preciso silenciar as travessuras

_ A Alex está no quarto dela…
_ Nossa. Ela não te avisou que aquele não é mais o quarto dela?

O sorriso perverso voltou aos lábios de Rayssa que parecia observar Anne como quem aprecia um pote de balas coloridas e pensa em qual irá comer primeiro.

_ Você gosta de gatos?
_ O que?
_ Gatos. Bichos com quatro patas, uma boca, dois olhos e que eventualmente inventam movimentos e sons…
_ Eu sei muito o que é um gato Rayssa.
_ Então responda a minha pergunta: gosta de gatos ou não?

Anne cruzou os braços diante do corpo exibindo todo o seu descontentamento para com aquele diálogo sem sentido algum. Respirou fundo feito um boi bravo no pasto, disposto ao ataque. Fechou a cara. Ferveu seus pensamentos. Sentiu seus olhos incendiarem-se. Sua pele parecia estender-se por tudo o que a rodiava naquele momento. Mas se conteve. Pensou em sua amada e nas possíveis reações sempre a favor daquela garota petulante cuja arrogância transbordava de sua pele. Mas haveria um dia em que ela simplesmente desapareceria. Anne primeiro tremeu, mas depois acalmou-se e foi ao encontro de sua amada naquele quarto que não mais lhe pertencia. Na certa iriam embora. Na certa discutiriam e seriam precisos novos presentes, novas desculpas, novas flores sobre a mesa com cartões coloridos dizendo o que sempre dizia para certificar-se que ela não esqueceria.

>>> continua na quarta-feira, 09/02/2011