Por Lunna Guedes

epifanias

“Ela caminhava por entre os olhares atentos daquela gente que embora estivessem acostumados a receber muitos estranhos. Definitivamente, eles não gostavam disso. Mas a falta de opção os obrigava a aceitar o inaceitável. Dentre todos os olhares, um ganhou atenção de Giulia que se viu refém daqueles olhos amendoados, suave como o orvalho da madrugada e denso como as noites de lua cheia. Ele disfarçava, evitava olhar pra ela o tempo todo, mas tinha descoberto sua beleza. Estava encantado. Fascinado. Não conseguia evitá-la, por mais que tentasse, seus olhos a descobriam ali, em meio aquela multidão que se esbarrava na praça frente a igreja onde se comemorava o aniversário da santa. O sorriso de menina floresceu naqueles lábios que eram constantemente umedecidos por uma vontade antiga recém inventada. Era como se ela pudesse de fato sentir um beijo ardente que causava furor em suas entranhas. Era um simples encontro, mas parecia programado há tempos, como se algum deus brincalhão tivesse tramado aquele acontecimento apenas para sua própria diversão”…

A leitura teria continuado em meio a empolgação exibida por Alexandra que devorava aquelas páginas uma a uma, numa pressa necessária se não tivesse sido interrompida por Anne que não estava satisfeita com aquela nova situação.

_ Vamos embora Alexandra. Eu não quero passar a noite aqui…
_ Agora não dá Anne. Eu preciso terminar de ler esse manuscrito. Depois. Está bem?
_ Você pode ler ele em casa. Não precisa ser aqui nesse quarto, nesse apartamento. E você não me disse que a sua amiga tinha voltado…
_ Agora não Anne. Eu estou na melhor parte. A Giulia acaba de conhecer o grande amor da vida dela.
_ Quem é Giulia?
_ A personagem da história que eu estou lendo. Olha, tudo bem se você quiser ir, mas eu vou ficar. A Rayssa voltou hoje e a gente nem conversou ainda. Eu quero saber absolutamente tudo sobre a viagem dela, mas só depois que eu terminar aqui. Me dá licença?
_ Como é que é?
_ Sem drama, por favor. Eu só quero terminar de ler essa história. Está bem?

Anne saiu do quarto, contrariada. Se antes estava zangada, agora estava irritada. Ela achava impressionante como Alexandra ficava diferente quando Rayssa estava por perto. Em seu intimo, ela simplesmente desejava que aquela menina desaparecesse pra sempre da face da terra. Pensamentos incomuns surgiam em sua mente e o sorriso sentia a ausência de lucidez em suas veias. Ela imaginava um corpo estendido no chão, coberto de sangue, sem vida. Seria difícil para Alexandra, mas seria passageiro. Ela iria superar. Tudo muito simples em sua mente, mas tão complicado na vida real. Era impossível matar alguém sem ser descoberto e além do mais, embora sua mente tornasse possível, sua pele não parecia capaz de um ato tão vil. Mas que havia alguma satisfação naquele delírio noturno, de fato havia.

Seus pensamentos foram espantados para longe graças ao som da campainha que revelou vozes animadas: eram os pais de Rayssa com meia dúzia de sacolas e uma animação pouco comum. Anne já sabia de antemão que não iria gostar daquelas pessoas que pareciam felizes demais para serem de verdade. Ela viu quando o Bruno tirou a filha do chão, abraçando-a, beijando-a com uma alegria pouco comum aos olhos dela. O sorriso daquela mulher alta, cheia de curvas perfeitas demais, cabelos longos e uma pele lisa, feito pêssego era um exagero. O abraço coletivo era uma desfaçatez e todos aqueles movimentos exagerados. Aquela euforia tão pouco natural. Nem precisavam ser apresentados. Dava para perceber que aquela garota mimada, prepotente e arrogante era filha delas. Mas Anne se fez perceber, ficando ali naquele cenário com os braços cruzados a frente do corpo e seu ar de superioridade tradicional que parecia dizer “eu sou a artista plástica Anne Letrech”.

_ Me deixa apresentar vocês: Anne Letrech, esses são os meus pais Bruno e Mariana Mendelson…

Mariana gentilmente corrigiu seu nome para “simplesmente Mari” rapidamente ao estender sua mão a fim de cumprimentá-la, mas mesmo disfarçando, ela não conseguiu evitar deixar transparecer a falta de empatia para com aquela mulher que tinha uma expressão desagradável. Bruno foi quem quebrou o gelo atraindo todos para a cozinha. Era um momento família. Uma massa seria preparada e cada qual teria suas funções. Lavar e cortar os tomates, cebolas, alho, salsinha. Pegar a panela e colocar a água para ferver.

Abrir a garrafa de vinho e servir a todos que estavam presentes. Preparar a mesa e claro, escolher a música perfeita porque nada poderia ser feito sem um som delicioso ecoando pela atmosfera.

E ali em seu canto, Anne assistia aqueles movimentos desordenados dos quais se recusava a participar. Tudo aquilo era muito desconfortável. Aquela família não parecia de verdade. Não pareciam reais. Quem conseguia ser tão feliz assim? – indagava-se ela.

Alexandra terminou sua leitura minutos antes do jantar estar pronto. Seus olhos estavam nublados, mas o sorriso era de primavera. Ela queria escrever sobre a história, mas o cheiro que vinha da cozinha seqüestrou sua atenção. E para desencanto total de Anne ela se juntou aqueles carinhos intrépidos: abraços, beijos, palavras carinhosos, troca de afeto. “quanta falsidade” – pensava ela que se sentou a mesa e ouviu Bruno propor um brinde.

Rayssa exaltou-se. Deu um grito de alegria, bateu palmas e se jogou nos braços da amiga, abraçando-a fortemente. Disse “parabéns” bem baixinho apenas para que ela pudesse ouvir e ficaram ali aninhadas naquele abraço que recebeu outros braços e outras palavras amigas que foram atentamente observadas por Anne que não conseguia compreender como aquelas pessoas conseguiam despertar daquela forma: tão alegres e felizes como se não houvesse dores, tristezas ou agonias no mundo.

_ Isso sem dúvida alguma merece um brinde…
_ A essa hora da manhã? – comentou Anne de forma a se fazer notar, afinal, ninguém ali havia reparado na sua presença, nem mesmo Alexandra que havia contado uma novidade para todos, menos para ela. Seus pensamentos novamente desenhavam cadáveres. E novamente ela se ressentia. E novamente ela e Alexandra brigariam e tudo seguiria seu ritmo habitual: flores, cartões, presentes… Desculpas eram renovadas, mas a cada novo dia a aceitação diminuía. Mas isso Anne Letrech não percebia…

 

>>> continua em 14/02/2011