Por Lunna Guedes

Fingindo uma descrição que não convencia, Alexandra tentava disfarçar sua ansiedade, mas seu olhar vasculhava cada centímetro daquele lugar em busca daquele homem que reinava absoluto em sua mente. Contemplava outros olhos e bocas longamente em silêncio, numa luta insensata que revelava outros estranhos que nada lhe dizia.
Ela viu quando Anne adentrou o salão ao lado de sua assistente. Trocaram olhares rapidamente e se perderam uma da outra por vontade de Alexandra que não tinha a menor disposição para respostas ríspidas naquela noite em que o aparente sucesso da revista se convertia em badalação noturna.

Seu corpo se mantinha próximo a porta de entrada de forma a se certificar de cada pessoas que passava por ali. Havia  em sua pele uma curiosa esperança que parecia se intensificar a cada novo rosto que ela descobria participando daquele lugar.

_ Eu não me lembro de tê-la visto assim: tão ansiosa, nem mesmo quando descobriu que estava aqui em São Paulo. Ele vem?
_ Como eu vou saber? Tudo que eu sei é que ele procurou por mim lá na lavanderia. Soube disso quando fui pegar a roupa hoje na hora do almoço. Acredita que eu tinha me esquecido completamente dessa roupa?
_ Ainda bem que a esqueceu. Ou como ficaria sabendo que ele tinha procurado por você.
_ Como sempre dona Rayssa, você tem razão. Sabe que eu nem acreditei quando o rapaz me disse que um cliente deles tinha procurado por mim? Fiquei totalmente abobada. Nem sabia o que fazer. Então tirei o meu cartão e entreguei para o rapaz…
_ Que deve ter ligado pra ele e muito provavelmente, ele deve ter ido até tão logo desligou o telefone…
_ Imagina.
_ Se não é isso, posso saber por que razão você olha tanto para aquela porta?
_ Nem eu sei. Acho que eu estou ficando maluca.
_ Se prefere pensar assim…

image

Foi então que os olhos de Alexandra descobriram aquela sombra perfeita parado junto a jovem que verificava o nome dos convidados. Ela engoliu seco. Agarrou o braço de Rayssa. Sua mão gelou instantaneamente. Seus lábios mudos e secos ficaram. Seu corpo imóvel exibia certa surpresa por vê-lo entrar, afinal, como era possível seu nome estar na lista? Ela havia cuidado desses detalhes. Era possível saber seu nome sem sabê-lo?

_ Ai meu deus, ele está vindo na nossa direção. O que eu faço? Tem um buraco imenso no meu estomago… Acho que eu estou tremendo.
_ Relaxa.
_ Não esta falando sério, não é? Acho que eu estou sentindo cada centímetro do meu corpo vibrando de novo. Minhas pernas estão bambas…

Com seu sorriso torto e olhar expressivo, ele se aproximou lentamente. As vezes seu olhar espiava rapidamente a paisagem humana que coloria aquela salão, mas então se voltava para aquela jovem que não saia de seu pensamento desde aquele inusitado encontro.

_ Boa noite. – disse ele com aquela belíssima voz grave. O perfume continuava o mesmo e conforme a alcançava, era como se seus sentidos fossem sendo lentamente embriagados.
_ Rayssa Mendelson! É um enorme prazer conhecê-lo pessoalmente senhor Dave Moretti.
_ Sem o senhor por favor.
_ Desculpe. Essa é minha amiga Alex Mendes.
_ Dave Moretti? O dono da livraria da esquina?
_ Mundo pequeno, não acha?

Alex sorriu ao procurar pelo olhar de Rayssa que havia lhe dito algo parecido. Ela por sua vez lembrou-se de Michel e decidiu descobrir seu paradeiro. Desculpa recém inventada para deixar o casal a sós. Ele por sua vez, aproveitou-se do segundo de solidão para se aproximar, quase colando seu corpo junto ao dela. Queria dizer muita coisa. Num primeiro momento pensou em desculpar-se pela ousadia demonstrada no primeiro encontro, mas não pode fazê-lo, afinal, não se arrependia de nenhum de seus movimentos e se tivesse oportunidade semelhante, repetiria cada gesto.
Seu olhar devorava o dela, sua mão que havia alcançado seu braço, sentia sutilmente aquela tez úmida e fria.

_ Se eu pudesse eu a levaria daqui agora mesmo. Pode até não acreditar em mim e deve ter suas razões pra isso. Mas eu nunca antes fui tão impetuoso como fui com você. Posso confessar a você que desde o nosso inusitado encontro que não paro de pensar em você Alex Mendes. Lindo nome, faz jus a você.

Como estava difícil respirar, conter-se, sentir aquele toque junto a sua pele, manter-se lúcida e sobre os pés. Ela queria renovar o sabor daqueles lábios junto aos seus. Queria sentir novamente o calor intenso daquela pele junto a dela numa entrega plena. Mas ficaram ali, em meio a sorrisos espaçados, contendo o que de fato não podia ser contido.
O casal que seguia ali em meio um diálogo tímido era espiado de longe por meia dúzia de olhos. Anne estava inquieta com a atenção dedicada por sua menina aquele belo espécime que para ela era um macho demarcando território. Não oferecia perigo real de acordo com seus pensamentos, mas tinha o que ela desejava ter naquele momento sua presença. Do outro lado, estava Rayssa e Michel que brindavam aquele encontro.

_ Então foi você quem colocou o nome dele na lista de convidados?
_ Por que acha que eu fiz isso?
_ Eu não acho ma cherie, mas afinal, quem é esse Dave Moretti?
_ Uma das figuras mais interessantes de São Paulo. Ele era um dos mais importantes advogados do interior de São Paulo. Um dia, a bordo de seus quarenta e pouco anos, ele decidiu abandonar tudo. A família achou que era uma dessas crises que os homens enfrentam. Só sossegaram quando ele distribuiu tudo que tinha em vida. Separou-se e veio pra São Paulo com a roupa do corpo e algum dinheiro. Ele foi lavador de pratos, vendedor, recepcionista de hotel, garagista até que acabou trabalhando num sebo. Apaixonei-se por livros e abriu um pequeno negócio numa garagem lá na Vila Madalena. Em poucos meses o lugar passou a ser o point dos artistas e ficou pequeno pra tantas atividades. De esquina em esquina, ele se tornou um dos principais nomes do ramo. No ano passado ele travou uma difícil batalha judicial com seus filhos que em pouco mais de dez anos: perderam tudo que ele tinha levado uma vida inteira pra construir e claro que quando descobriram que o pai estava afortunado novamente, lembrando que ele existia. Foi assim que eu soube de sua história de vida que ganhou destaque em jornais, revistas. Uma das matérias dizia “é possível ser feliz depois dos cinquenta”…
_ Título sugestivo. Acho que combina comigo. Mas eu acho que até então ele ainda não era feliz. – disse ele olhando rapidamente na direção do casal para em seguida voltar a admirar os olhos de sua amada que havia desenhado em sua pele uma felicidade que até então, ele só conhecia de livros e filmes, ou de ouvir narrativas alheias. _ E o que você acha que vai acontecer entre eles?
_ Como eu vou saber monsieur Michel Lawrence?
_ Não me convenceu. Agora me conta…
_ Bem, já que existe. Eu acho que houve uma precipitação natural entre eles. O toque, o desejo, a paixão já estão em suas peles. Agora ele vai querer ir mais devagar. Conhecê-la intimamente. Sabê-la. Decorá-la. Num primeiro momento, ele vai desejar levá-la daqui para algum lugar, mas vai se conter o máximo que puder. Vai apenas deixá-la em casa. Então vai saltar do carro para abrir a porta do prédio e convidá-la para um jantar no dia seguinte. Ela vai sorrir e dizer “claro” e aquela sensação de desconforto vai desaparecer completamente quando ele a envolver num beijo que irá romper com o silêncio do mundo. Os dois vão passar cada segundo daquele dia pensando um no outro. Ele vai ligar pela manhã para confirmar o encontro. Vai escolher cuidadosamente o lugar. Vai fazer perguntas pessoais. Ela vai se sentir obrigatoriamente mais envolvida e vai ser surpreendida por flores que trazem no lugar de pedidos de desculpas, uma breve frase “penso em você cada vez mais”. Eles irão caminhar na manhã paulistana e juntos vão desenhar uma nova cidade que pra eles é mais lenta, mais intima e bastante insensata. Vão acabar sorrindo com a lembrança do encontro entre eles e numa noite dessas, ele vai levá-la para sua casa e vai amá-la intensamente ali mesmo no sofá e vai saber que ela era tudo que ele procurava. E ela vai saber que está vivendo seu romance, igual aos que escrevo, como era seu desejo…
_ Se não estivéssemos em público, eu confesso que bateria palmas. Você tem o dom mon amour. Poucas vezes vi um romance tão bem narrado como agora…
_ Oras, você é suspeito mon amour.
_ Só porque eu sou completamente apaixonado por você? Isso faz de mim um suspeito?

O sorriso desapareceu dos lábios de Rayssa tão logo foram alcançados pelos lábios de Michel que parecia se perder toda vez que a alcançava. Era como se o mundo inteiro se ausentasse deles por alguns instantes.

É válido dizer que Rayssa não se enganou com seus dizeres, talvez porque sua novela narrasse cada detalhe daquele encontro nas últimas páginas da revista que seguia ganhando cada vez mais espaço naquele cenário onde o literário parecia se espremer sempre.

_ Bom dia…
_ Não é mesmo incrível como o amor faz bem as pessoas?
_ Eu nunca disse o contrário. E a senhora não se esqueça da reunião com a Ella hoje. Ela vai estar na minha sala novamente as duas horas em ponto. E dessa vez você vai, nem que eu tenha que te arrastar pra lá.
_ Como você é chata Alex. Eu não quero sair de casa. Faltam apenas três capítulos. Sabe o que significa isso?
_ Claro que eu sei. Não fica assim Rayssa. É só mais uma história que chega ao fim. E essa demorou bem mais que todas as outras.

As mãos unidas sobre a mesa se confundiam ali naquele cenário que parecia esmaecer em meio as primeiras sombras do dia. O sol urdia junto a janela e uma brisa tumultuava as cortinas. As lágrimas corriam pela face de Rayssa que parecia sofrer intensamente naquele momento.

_ Eu ainda não consigo suportar o vazio que fica quando tudo se acaba. Estão todos aqui comigo e de repente só fica essa paisagem silenciosa, vazia. Tão humana e cruel quanto se é possível ser. O mundo real das coisas. Insuportável…
_ Hei, eu vou estar aqui com você.
_ Nós duas sabemos que não.
_ Claro que eu vou estar aqui Rayssa. Você é minha melhor amiga. Lembra-se?

Rayssa respirou fundo, enxugou as lágrimas e se deixou ficar naquele abraço apertado que naquele momento não era capaz de confortá-la. Ela sabia das horas seguintes, dia seguinte. Sabia que as coisas reais fugiam ao seu controle. Sabia que naquele mundo, suas palavras não tinham valor algum. Ali ela era apenas um personagem sendo comandada por linhas de um destino que não era tecido por ela.
A manhã passou por ela com a inquietação que lhe cabia. Inúmeras folhas amassadas foram ao chão. As teclas do computador imprimiam um ritmo alucinado, desumano. Mas absolutamente nada a satisfazia. O cenário a sua volta exibia desconforto. A janela parecia indiferente e já não mostrava o mesmo horizonte de antes. Não chovia. Os últimos dias de agosto finalmente se apresentavam. Aquele mês que havia se arrastado semanas adentro como de costume. Tudo tão lendo. O único som que prevalecia era o das buzinas que se precipitavam pelas ruas inundadas de rodas e passos. Tudo naquele lugar estava fora de lugar, inclusive ela mesma que tomou um banho e seguiu a passos lentos para a redação da revista. Chegou alguns minutos atrasada, nada que não pudesse ser tolerado.
Alexandra não estava em sua sala, de acordo com sua secretaria que a viu sair correndo depois de ler um bilhete que ela mesmo havia entregue a ela.
_ Eu acho que teve algum problema com a impressão da revista. Mas a Ella já está a sua espera na sala da Alex. Fique a vontade Rayssa.

Não era o melhor momento para falar com um estranho, mas não havia outra opção naquele momento. Um sorriso. Um aperto de mãos e o silêncio daquele lugar cedeu diante das inúmeras palavras ditas por aquela mulher que se esforçava em parecer profissional, já que era tudo que lhe restava naquele momento. Rayssa a desenhou em um pequeno pedaço de papel em poucos segundos, mas como não queria um personagem novo naquele momento; livrou-se do papel e ao fazê-lo descobriu o bilhete ao lado da lixeira, no chão.

“Meu amor, eu vou provar pra você que nosso amor é pra sempre, mas ao fazê-lo temo que possa ser tarde demais. Algumas coisas se esvaem por entre nós, mas o amor com toda certeza não é uma delas. Depois de hoje, você não poderá mais me arrancar de você. Eu estarei em você pra sempre”… Anne Letrech

_ Será que podemos continuar essa conversa num outro dia?
_ Algum problema Rayssa?
_ Talvez, mas eu não posso explicar agora. Me desculpe… Nos falamos numa outra hora.

Rayssa saiu apressada da sala e acabou esbarrando em Dave que estava ali para uma de suas visitas surpresa. Tinha em mãos um belíssimo arranjo de flores do campo e acabava de receber a notícia da secretaria de que sua amada não estava.
_ Rayssa? Que surpresa boa encontrá-la. Como vai?
_ Com muita pressa. Vem comigo. Eu te explico tudo no caminho…

Ela o puxou pelo braço. Sua mão estava fria e sua face inquieta. Reclamou da demora do elevador ao chegar e do tempo levado até a garagem. Estava com pressa, mas há momentos em que a pressa se torna vã. Os obstáculos são muitos, a começar pelo transito. Todos os sinais da cidade pareciam exibir uma única cor: vermelho. Enquanto isso, ela contava a Dave uma história cheia de reticências que envolvia uma artista plástica, uma jovem recém chegada do interior e um possível desfecho que talvez fosse tarde demais para ser alterado.
Os dois chegaram ao prédio onde Anne morava e depois de algum tempo conseguiram se livrar do porteiro que não queria deixá-los subir. A porta do apartamento estava aberta. Havia um silêncio insuportável entre aquelas paredes. Os únicos movimentos eram os dele. Sobre o sofá uma série de fotografias que desenhavam um cenário. O título “interioridades” revelava o tempo dedicado por Anne aquela composição. Tudo orientado de forma precisa: tempo e espaço. Tantas sombras. Parecia ser a única coisa a fazer sentido ali. De repente o silêncio foi rompido pela voz de Dave que grito por ela. A fotografia em sua mão narrava aquele cenário. Uma mulher na banheira com as mãos para fora com os pulsos cortados. A vida por um fio, se esvaindo lentamente desde o começo daquela manhã. Não havia mais nada a ser feito. Estava morta. Ao lado da porta estava Alex, sentada junto a parede com as mãos cheias de sangue, a camisa molhada. Os olhos secos, perdidos. Estavam em choque. Ela, como o personagem na foto havia tentando remover o corpo da banheira, espalhando água pelo chão do banheiro. O peso não lhe permitiu agir. O silêncio causado pelo terror daquela cena. não lhe permitiu outra coisa que não fosse ficar ali, sentada, em pânico e teria ficado ali pra sempre não fosse a presença de Rayssa e Dave.

image
Aquele era visivelmente um cenário preparado meticulosamente por uma artista que desenhou sua própria morte e prendeu a ela um espirito que ao menos por enquanto voava de encontro a uma janela onde se sentia segura. Alexandra estava novamente presa a uma pequena cidade e na maneira de pensar de Anne Letrech “estavam juntas pra sempre”.