Por Lunna Guedes

epifanias

“E dança o silêncio da autora em minha janela de agora. Já é tarde, mas para mim, o dia acabou de acontecer. E tudo novo e faz tanto barulho, tem tantos movimentos e tudo é estranho e diferente. São tantas ausências possíveis que eu sinto que vou precisar de uma vida inteira para compreender essa cidade. Certa vez a Rayssa me falou de Eliot e ao fazê-lo disse que era um desses poetas que a gente leva uma vida para conseguir entender seus versos. Então ouso compará-lo a essa cidade”.

Esta é a terra morta
Esta é a terra do cacto
Aqui as imagens de pedra
Estão eretas, aqui recebem elas
A súplica da mão de um morto
Sob o lampejo de uma estrela agonizante.
(…)T.S.Eliot

image A chuva caia forte pela estrada, os para brisas se movimentavam de forma frenética bem ali na frente, mas era quase impossível enxergar alguma coisa e mesmo assim Rayssa guiava como se nada acontecesse. Alexandra seguia tranqüila, acomodada em si mesma no banco ao lado. Sentia frio. A temperatura não passava dos 16 graus e faltavam poucos dias para o verão. Era sinal de que o mundo estava a beira do caos, ao menos era o que começava a cantar os fanáticos ecologistas que faziam coro sobre o tal fim do mundo. Mas tantos outros já tinham feito o mesmo, a própria igreja havia cantado em alto e bom som que “dois mil chegará, mas não passará” mas o resultado era que 2001 estava correndo com toda pressa possível e dentro em breve 2002 bateria as portas sem pedir licença para entrar…

Rayssa havia convidado Alexandra para uma viagem, como de costume, não havia sido algo planejado. Ela simplesmente disse “quer saber? Eu quero pegar a estrada e você vem comigo” e foi tudo. Nada de mapas, tão poucos destinos. Apenas a estrada à frente… Para Alexandra que só tinha ido para o interior do estado para visitar parentes, qualquer direção contrária a pequena Teodoro Sampaio já era motivo de festa…

Tudo a sua volta foi se tornando rarefeito, transformando-se lentamente numa seqüência de casas, fábricas, granjas, lanchonetes e muito mato a solto pelos cantos da estrada que parecia deixar de lado a cidade rumo a lugar nenhum. Alexandra adormeceu tal e qual fazem as crianças nas horas mais estranhas. A cabeça pendeu para o lado, encontrando aconchego no vidro embaçado e ela só acordou quando o carro parou.

_ Acorda dorminhoca. Chegamos…
_ Chegamos onde? – perguntou ela com voz de quem tinha dormido horas inteiras. O corpo estava todo duro e os movimentos desajeitados, quase enferrujados. Ela se alongou ainda no carro enquanto procurava identificar a bela paisagem: uma casa branca, grande, com pilastras de gesso e uma enorme porta de onde um belo homem, muito bem vestido saiu já de braços abertos para receber Rayssa a quem envolveu num abraço demorado e depois se pôs a esperar ao lado dela pela amiga da filha que se demorou no carro.
_ Pai, essa é a Alex.

Alexandra engoliu seco. O pensamento repetiu várias vezes “pai?” – como se fosse a única forma de convencimento possível. Um sorriso tímido e sem graça ocupou seus lábios que na certa estavam pálidos. Seus braços estavam gelados. Ela não sabia onde estava, mas uma coisa era certa: fazia frio. O céu estava cinza, a paisagem úmida, mas não havia chovido. Ao menos não nas últimas horas.

_ Muito prazer Alex. É uma honra tê-la aqui em minha casa. Vamos entrar. Deixem às malas, eu peço para um dos empregados vir pegá-las mais tarde. O lanche está quase servido. Venha…

A casa era enorme, cheia de detalhes intrigantes. Parecia uma daquelas casas de novelas onde cada detalhe foi cuidadosamente planejado para satisfazer o gosto de alguém: no caso, a mãe de Rayssa que era uma mulher encantadora e não escondia a satisfação por tê-la ali.

_ Quando a Rayssa me disse que iria trazer uma amiga fiquei curiosíssima. É a primeira vez que isso acontece. Então imagine só o meu espanto. Nossa. Perdoe meus péssimos atos. Meu nome é Mariana Mendelson…
_ É um prazer conhecê-la senhora Mariana… A Rayssa fala muito da senhora.
_ Bem ou mal?
_ Bem, é claro…
_ Sei. Eu nunca falei de minha mãe em toda a minha juventude. Ela era um terror, mas vamos nos sentar, aposto como estão famintas.

A mesa tinha todo tipo de guloseima que se pode imaginar: frutas, sucos naturais, geléias, torradas, bolo, biscoito. Parecia até um daqueles comerciais de margarina que tantas vezes ela tinha visto na televisão. Todos ali sentados, comportadamente, dialogando sobre os dias passados, a faculdade. Curiosidades naturais de um pai e de uma mãe. Algo totalmente atípico para Alexandra que nunca ouviu sua mãe perguntar absolutamente nada sobre seus estudos ou trabalhos.

_ Alguém ligou pra você enquanto esteve fora: Giulia Medeiros. Disse que era decoradora. Não está satisfeita com o trabalho da Melissa?
_ Estou, mas se trata de um projeto pessoal. Eu encontrei um artigo sobre essa mulher em uma revista antiga de decoração. Ela foi destaque no final dos anos oitenta. Mas desapareceu do mapa. Eu consegui o endereço dela no escritório onde ela trabalhou. O marido dela levou adiante o nome “medeiro´s art”. Ela vive numa casa estranha, escura, úmida no final de uma rua lá no Alto da Lapa. Eu queria que ela decorasse meu novo apartamento, aquele que o papai me deu no começo do ano, mas não consegui convencê-la. Ela me disse que havia perdido o seu estilo. Como não me convenceu, eu deixei meu telefone de contato com ela.
_ Parece que alguém está prestes a fazer uma colheita, não é mesmo meu querido?

A risada ousada de Bruno significava que aquela mulher, fosse ela quem fosse não tinha resistido à investida de sua filha. Coisa, aliás, que era completamente impossível. Ele melhor que ninguém sabia muito bem disso.

image Depois do lanche, Alexandra foi apresentada aos seus aposentos onde ficou durante alguns minutos a admirar a paisagem da janela que era uma espécie de moldura da qual não se consegue tirar os olhos. Ela ainda não sabia onde estava, mas a paisagem exibida por aquela janela era realmente encantadora: um lindo jardim com piscina, coqueiros altos, inúmeras flores coloridas, bancos convidativos, mesinhas furtivas que pareciam pedir livros e virar de páginas e um gramado deliciosamente verde.

O banho acabou demorando um tempo a mais do que o habitual, afinal, ela nunca antes havia tomado banho de banheira o que a fez sentir como se estivesse numa daquelas cenas de novela: perna esticada, espuma por todos os lados e o desconforto de não conseguir se livrar de todas aquelas espumas, o que fez Rayssa achar graça.

_ O que está fazendo aí?
_ Vim te perguntar se quer ir conhecer o meu apartamento. E claro, aproveitar pra te dizer que vai ter que ligar o chuveiro pra se livrar de toda essa espuma…
_ Não vejo graça…
_ Eu também não.
_ Mas continua rindo…
_ Mas não é disso que eu estou rindo.
_ Então é de que?
_ É que você ainda não faz idéia de onde está.
_ Como assim? Eu estou na casa dos seus pais…
_ A questão é justamente essa: a cidade onde fica a casa dos meus pais. Sabe o que é? Nesses três anos em que a gente se conhece eu tenho visto você planejando incansavelmente a sua vinda pra São Paulo. Então eu pensei: chega de planejar; vamos simplesmente acontecer. Então: voilá…

Alexandra tentou dizer alguma coisa, mas não conseguiu, afinal, parecia tão irreal ela estar em São Paulo que seus movimentos simplesmente se extinguiram como se nunca de fato tivessem existido.

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>>> continua…

Próximo capítulo 29/12/2010