Ela subiu as escadas correndo. Entrou e fechou a porta do seu mundo, sentindo o vento tocar suavemente seu rosto. Deixou a janela aberta, de par em par, e permitiu que seus olhos se habituassem na escuridão e o seu corpo ao cheiro de umidade e de vidas passadas. Estava no sótão. Num lugar que conhecera contra sua vontade e que aprendera a amar. Nunca mais havia frequentado aquele espaço. Mas, logo se deixou embalar pelos momentos vividos e violou um baú cheio de sonhos e várias lembranças esquecidas, que pareciam estarem apagadas. Olhou para todos os lados do sótão, e teve vontade de despir aquele cantinho e buscar as lembranças de um passado que ora lhe encantava, ora lhe entristecia.
O cheiro antigo fez com que Victória viajasse no tempo e reencontrasse com aquelas velhas recordações, frases inacabadas, textos incompletos e saudades de um mundo que ela nunca queria ter deixado. Observou papéis, rabiscos, agendas antigas, brinquedos infantis… Fotografias. Álbuns onde se retratou a preto e branco os momentos que lhe pertenceram. Sentiu todos os aromas de cada dia vivido. Ouviu as suas histórias e envolveu-se extraordinariamente em recordações emocionantes, bizarras e felizes…Sentou-se na velha poltrona de veludo vermelho, que agora estava desbotada pelo tempo, e voltou ao passado. Reencontrou tudo o que vivera. Victória descobrira o sótão num dia chuvoso, num dia de saudade, num dia de tempestade… Era um esconderijo, seu lugar, seu mundo, suas vozes… A média luz passou os dedos pelas molduras e pelos pedaços de cristal do pingente que recebeu, ainda menina, e ele fez questão de partir na sua frente, num gesto de provocação declarada.

Já de pé, remexeu nas gavetas que um dia, marcou a presença e o cheiro de palavras viradas ao avesso e o lugar onde os corpos se tocaram. No dia em que Victória subiu as escadas, dobraram-se os sinos em agonias de bronze, acendeu velas para queimar o que sobrou das lembranças que alguém deixou. E nesse seu auto-de-fé, reviveu o que sobrou do único espaço que nunca concedera. E, antes de sair, fez-se boneca e deitou-se naquele baú dos sonhos e colocou-o bem de frente à porta para recordar que aquele espaço nunca deixaria de ser seu.