Por Rita Schultz

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E quem comanda a embarcação hoje por aqui é a querida Rita Schultz

Amor virtual

 

Ela usaria calça jeans e blusa azul. Ele também estaria vestido de calça jeans, mas de camisa branca.

O encontro, virtualmente combinado após oito meses de acenos e indecisões, expectativas perdoadas, ácidas palavras e lábios seduzidos, dependia só deles: cederam à carência afetiva, à solidão dos desejos e, contrariados, movediços, atualizaram-se na hora.

A cafeteria era a do centro. Shopping é um castigo civilizado e prejudicial ao diálogo com desconhecidos. Bem, conhecidos na rede virtual, desconhecidos na calçada, no quarto de algum hotel.

Num restaurante, reconheceriam o eco das próprias vozes, o desejo de alguma carne ainda não experimentada. Melhor não correr o risco, ela achou.

Ele tinha inseguranças. Seria ainda interessante? Feio? Teria os dentes amarelados, as costas curvas, por ser muito alto, teria pouco cabelo, muito?

Ela, incerta na pele e na resposta: sim? Não? Mulher de algum medo, daqueles de arrepios exigentes, de ciladas, desconfiada. De desejos.

Julgaram definitivos que seria no Café. Discreto, porém elegante, as mesas pretas combinadas ao balcão, paisagens generosas nas paredes. Ideal para um encontro às escuras, na tarde clara, esquecidos de desistir do amor. De sexo, quem sabe?

Ela entrou expondo as curvas de lado a lado, altiva.

Usava um vestidinho sem mangas, azul e arriscou a depressão e a melancolia, sentando-se na cadeira. Escolheu café com chantili, a bolsa ao lado para aquelas que quisessem invejar.

Confiscou o entorno.

Casais conversavam nas outras mesas, uns lanchavam lá mais para o fundo, um adolescente devorava um sunday ali perto. Pessoas entravam e saíam aos poucos conversando entre si.

Um homem moreno, camisa e calça brancas, sentado no sofá, lia uma revista de famosos e polêmicos, na vida pública e privada, em geral.

Na verdade, ela esperava sem arrogância. Sem criar muita expectativa, agora. Que boba! Um encontro marcado! Sentiu-se uma adolescente amarfanhada. Nunca fora assim, de euforia, de alegria. Sorria sim, às vezes, as covinhas na bochecha deixando-a mais atraente. Quem se interessaria?

Viu a porta do banheiro e quis se proteger, enquanto esperava. Mulher sempre espera.

Passou pelo homem moreno que a seduziu de cima a baixo. Indiferente, mas provocante, ela fechou a porta. Retocou o batom diante do espelho, penteou os cabelos pretos e olhou-se de um lado e de outro.

Mulheres conversavam entre si e uma delas perguntou se não se importava em emprestar o batom. O batom? Oh, é claro que não! O batom, meu Deus! Emprestou-o. Nunca mais usaria aquele.

De volta à mesa, percebeu o ambiente dominado por mais vozes e perguntou à atendente se não vira um homem vestido de calça jeans. Ah, sim, e de camisa branca.

Não, não o vira. Pediu outro café e voltou os grandes olhos negros para as paisagens nas paredes, enquanto pensava, por que não tinha ela se atrasado? Que atrevido, fazê-la esperar deste jeito!

No sofá de couro marrom, o homem vestido de branco olhava desinteressadamente a revista. Passava as folhas, observava a porta de entrada, percorria interessado com os olhos o salão.

Estava cansado de esperar. Pedira à secretária que desmarcasse todas as consultas daquela tarde. Caramba, como se sentia revigorado! Como quando tinha uns vinte e poucos anos e abraçava, beijava e se divertia com as mulheres. Excitou-se.

Seus quarenta anos procuraram pela calça jeans e pela blusa azul. Ninguém. Sentiu-se cansado de esperar.

Era médico famoso. Diria a algum bisbilhoteiro conhecido, se necessário, que este fora um encontro casual, uma paciente. Confiante, viril, trataria de levá-la logo para uma cama. Sentia que não haveria dificuldades: ela parecia ser tão delicada, tão ingênua. Escrevia versos via cabo. Certos dias, ele trabalhava ansioso, esperando o momento combinado para o troca-troca virtual.

Levantou-se, pediu um café puro no balcão. Experimentou: saboroso. Virou-se para as pessoas. Enigmático. Sua beleza paralisou por breves instantes, os rostos femininos. Viu uma mulher dentro de um vestidinho azul. Enigmática. Seus olhos se encontraram e ele sentiu uma estranha taquicardia: ela era muito bonita.

Mas, e a calça jeans? Perguntou, deseducado à atendente. Não, não a tinha visto. Suspirou ainda contrariado e voltou-se de costas para as mesas.

Terminado o café, dirigiu-se para o caixa. Esbarrou na mulher do vestido azul. Desculpou-se e permitiu que ela pagasse a conta antes dele. Depois, ela voltou-se para ele, percebeu toda a sua altura e fitou-o nos olhos. Murmurou delicadamente, obrigada, e saiu para a tarde.

Ele pagou o café, caminhou atrás dela, devorando-a pelos quadris elegantes. E decidiu: nada de mulheres virtuais!

Ela entrou no carro, decepcionada, e decidiu: nada de homens virtuais!

Órfãos do amor voltaram distraídos e sedutores para suas vidas. Desaprendidos de recomeçar.

Rita Schultz

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Rita Schultz é autora do livro Corpo Cindido, escritora por paixão, poeta por vocação. Adora escrever e deixa as palavras rasgarem a sua alma. Poeta, escritora, mãe… mas acima de tudo escritora da alma.

Onde encontrar:

Email: ritaschultzm@yahoo.com.br

Blog: http://ritaschultz.wordpress.com

Twitter: ritaschultz